“Deus me livre de mulher CEO”. Bastou essa frase, seguida por uma série de comentários sobre “energia feminina” e papéis estereotipados de gênero, para que o nome do presidente da escola de negócios G4 Educação rodasse os jornais e a internet nos últimos dois dias. Como em outros momentos em que fez declarações polêmicas, Tallis Gomes ganhou os holofotes. Mas mulheres na liderança de empresas e especialistas em equidade de gênero querem aproveitar o momento para desviar o foco dele e educar outros homens no ambiente corporativo.

“É um momento de convocar os homens ao centro do debate. Eles têm um papel na família, social e, ainda mais importante, de serem aliados da pauta e não de falar que esse é um assunto de mulheres e sair da sala. Temos que conseguir falar essencialmente para homens sobre as problemáticas da mulher. Não é um momento de criar um movimento de cancelamento [de Tallis Gomes], porque essas pessoas lucram com ele”, alerta a consultora de carreira, fundadora e diretora presidente do Instituto Mulheres do Imobiliário, Elisa Rosenthal. Ela enfatiza que a discussão não é sobre ele especificamente, mas sobre a cultura patriarcal que permite esse tipo de pensamento.

Ela lembra que a empresa de Gomes, a G4 Educação, é uma escola de negócios. Rosenthal questiona a competência de uma instituição liderada por ele para ensinar algo no ambiente corporativo contemporâneo. “A opinião dele é de uma pessoa que tem uma influência grande, e o mais grave é representar uma escola de negócios. O que ela está ensinando?”.

A G4 Educação divulgou uma nota em que disse não compactuar com as palavras de seu próprio CEO. Tallis Gomes também publicou um pedido de desculpas, em que disse ter “errado feio” e que seu comentário falava somente sobre quem ele gostaria de ter ao seu lado “como sua mulher” — a pergunta que engatilhou sua primeira fala era se ele estaria noivo se sua companheira fosse CEO de uma grande empresa. Ele também republicou o post de uma pessoa que diz que o empresário “se atiraria diante de um carro para impedir que uma mulher fosse atropelada. Que arriscaria a própria vida para evitar um assédio”.

Não é a primeira vez que o nome de Gomes se populariza por polêmicas. Também neste ano, ele disse que não contrataria “esquerdistas”. Depois, em entrevista à Folha de S.Paulo, admitiu que a intenção era chamar atenção e, com isso, aumentar suas vendas.

A consultora de carreira Elisa Rosenthal enfatiza que o momento é uma oportunidade para os homens se educarem, em vez de continuar a reproduzir estereótipos que, diz ela, aprisionam até eles próprios em visões rígidas de gênero.

“Que homem se levantou para estudar o feminismo de fato e não colocar essas frases equivocadas que ele [Tallis Gomes] falou? Para entender a pauta feminista a fundo e poder responder à altura do que o movimento fez e faz socialmente? Quais homens estudam a problemática da mulher, que se aprofundam? São mulheres que estudam, que trabalham essa pauta e a debatem. São raríssimos os homens. É um analfabetismo sobre essa pauta. O recurso de que você precisa é uma conexão com a internet. Com um Google, você resolve isso”, conclama ela.

Lideranças do passado

O posicionamento de Tallis Gomes sobre mulheres na liderança usa “declarações da Idade Média”, para a psicóloga, doutora em psicologia do trabalho, especialista em diversidade e inclusão e idealizadora da empresa Longeva, Juliana Seidl. Ela usa as falas como um gancho para aprofundar alguns temas.

Gomes afirmou, em sua postagem, que "a mulher tem o monopólio do poder de construir um lar e ser base de uma família — um homem jamais seria capaz de fazer isso”. Seidl lembra que os estereótipos de gênero servem, muitas vezes, para isentar os homens das responsabilidades domésticas e de cuidado com os filhos e outros membros da família.

“Essa é uma visão muito comum no pensamento machista, de que a mulher tem a principal função de servir, especialmente nos espaços de menor interesse para os homens. Então se eles não querem também aprender e contribuir no papel de pai, ou como dono de casa, assumindo os papéis familiares e sociais que eles deveriam, eles se sentem mais cômodos, faz bem para o ego deles”, diz ela.

Lançado nesta semana pela consultoria McKinsey e a organização Lean In, o relatório “Mulheres no Mercado de Trabalho” mostra que 39% das mulheres que têm um parceiro fazem todo ou a maior parte do trabalho doméstico. O número está aumentando — em 2016, era 35%.

Além do machismo apontado por Seidl, a psicóloga destaca que a perspectiva de liderança contextualizada por Gomes em sua fala é ultrapassada no mundo dos negócios, ainda que ele trabalhe no ramo de educação para empresas.

“A fala dele traduz uma visão de retrocesso dos estudos sobre liderança. Quais são as competências que se espera de um CEO ou de alguém que ocupe esse tipo de cargo? Será que tem que tomar as decisões sozinho? Isso depende do contexto. Não existe mais uma receita de bolo para dizer quem é um bom líder ou não, porque depende da empresa e do momento dela. Pode ser que, em um momento, o líder tenha que consultar todo mundo, ser mais consultivo. Não é o gênero que explica esse jeito, mas o aprendizado”. Em seu canal no YouTube, Gomes tem um vídeo dedicado a explicar por que, na visão dele, uma abordagem democrática, com líderes “fracos e frouxos”, não funciona em uma empresa.

Equidade de gênero? Ainda não

O número de mulheres CEOs é diferente em pesquisas com metodologias distintas, que avaliam ramos e portes diferentes de empresas, mas todos os levantamentos apontam que elas são minoria — mundialmente, representam 6% das mais altas lideranças corporativas, segundo a consultoria Deloitte. No Brasil, de acordo com a pesquisa, são 2,4%, mas outras fontes falam em até 17%.

A baixa concentração de mulheres nos cargos de liderança também é reflexo de fatores históricos, além das dificuldades do presente, sublinha a líder de experiência da pessoa candidata da plataforma de recrutamento Gupy, Jhenyffer Coutinho.

“Temos sofrido muito com a entrada tardia das mulheres no mercado de trabalho. Pouca gente sabe que somente em 1962 as mulheres puderam começar a trabalhar sem autorização dos maridos. Estou falando de 60 anos atrás, isso é muito pouco. Entramos atrasadas no mercado e estamos tentando correr atrás desse atraso. Isso fez com que não tivéssemos muitas referências de liderança feminina. Já é difícil o suficiente e, quando uma pessoa que educa outras reforça que existe um lugar que é a profissão da mulher e outro, do homem, só reforça esse pensamento para outras pessoas, que continuarão a repetir esse comportamento”.

 
Outros dados comprovam a desigualdade de gênero persistente no país. Em média, elas ganham 20,7% a menos do que os homens. As trabalhadoras recebem R$ 3.565,48, e eles, R$ 4.495,39, quase R$ 930 a mais. Em cargos de lideranças, elas ganham 27% a menos, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A situação piora quando se considera o recorte racial. As trabalhadoras negras recebem R$ 2.745,26 — praticamente metade do salário de homens não negros, que chega a R$ 5.464,29.

Notas de desculpa

Leia a notas de desculpa de Tallis Gomes na íntegra:

"Ontem, eu errei feio num texto aqui no Instagram. E quero reconhecer o erro e pedir desculpas.

Muitas mulheres se sentiram machucadas pelas minhas palavras, e eu estou profundamente chateado por ter magoado essas pessoas.

Fui infeliz no meu texto ao dizer qual tipo de mulher eu gostaria para a minha vida e acabei tocando em pontos sensíveis usando palavras que não deveria usar.

Em 2015 fundei a Singu, startup que tirou dezenas de milhares de mulheres de situação de violência familiar e subemprego, fazendo com que elas chegassem a triplicar a sua receita conosco.

No G4, a minha sócia e CFO, aquela quem cuida do caixa da empresa, é uma mulher. Algo infelizmente raro em grandes empresas como a nossa. A Misa é uma profissional competentíssima e nossa empresa nunca teria chegado onde chegou sem ela. Ou sem as centenas de mulheres que trabalham conosco.

Em momento algum no meu texto eu quis questionar a capacidade de uma mulher de ser CEO, disse única e exclusivamente, com as palavras erradas e com o tom errado, quem eu gostaria do meu lado como minha mulher.

Minhas palavras não representam o que o G4 é como empresa. Temos o orgulho de merecer a confiança de muitas mulheres executivas de sucesso.
E aprendo com elas diariamente.

Minhas mais sinceras desculpas por causar esse desconforto a todas vocês. O lugar das mulheres é onde elas quiserem estar. Seja na vida pessoal, seja no mercado de trabalho. Mais uma vez, desculpas.
"

E a nota da G4 Educação:

"O G4 Educação não compactua com as palavras do CEO Tallis
Gomes no Instagram ontem sobreas mulheres executivas.

Essas palavras não representam o pensamento do G4 e multo menos a história da nossa empresa. O próprio Tallis entendeu o seu erro e pediu desculpas públicas.

O C4 se orgulha de ter contribuído para a formação de centenas de mulheres executivas de sucesso. Continuaremos comprometidos com essa causa".