Sob os pés de quem anda pelo centro de Belo Horizonte, está um quebra-cabeça. São milhares de pedras portuguesas de diferentes formatos que calceteiros — como se chama os profissionais dedicados ao ofício — viram de um lado para o outro até elas se encaixarem e formarem desenhos que mudam de rua em rua. Só na região central da cidade, são 159 padrões estabelecidos pela prefeitura, fora 17 apenas para a Afonso Pena e 36 para as esquinas da avenida. A identidade visual de BH também está no chão.
A prefeitura é responsável pela manutenção de parte das calçadas — seis trechos que ela considera de alto fluxo de pessoas em pontos das avenidas Afonso Pena e Amazonas e das ruas dos Carijós e Rio de Janeiro. Nos demais, realizar reparos é obrigação dos donos dos imóveis em frente a cada uma.
“No geral, acho que as calçadas são muito mal cuidadas. Vemos muitos buracos. Na minha rua, quem tapa sou eu”, comenta André Palhares, um dos gestores do tradicional Café Palhares, na rua dos Tupinambás. Seu tio João Lúcio, também à frente do negócio, completa: “quando as calçadas estão arrumadinhas, todas são bonitas. Mas ninguém repara. É falta de cultura”.
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O vice-presidente de Relações Institucionais da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcos Corrêa, pondera que está em jogo um equilíbrio delicado entre patrimônio e praticidade nas calçadas. “Elas se tornaram um ícone estético da cidade, são muito bonitas. Há o valor histórico e cultural, esse atrativo estético e turístico. Porém, causam alguns problemas. Elas soltam fácil, com isso se cria um risco de queda, e elas podem ser utilizadas como armas. Há muitos trechos que ficam despadronizados porque não há mão de obra adequada”, diz.
Ele defende que trechos de alto fluxo de passagem tenham um piso intertravado (de placas de concreto pré-moldadas) e com cimento tátil. Também propõe que a prefeitura promova um treinamento de calceteiros.
É esta a profissão de José João da Silva há quatro décadas. Aos 72 anos, ele ainda passa horas por dia curvado sobre as calçadas revirando pedras nos dedos até encontrar a posição perfeita para cada uma na avenida Afonso Pena. “É um tipo de arte. A gente tem que gostar do trabalho. Algumas pessoas reparam nos desenhos. Tem alguns muito bem feitos em BH”, reflete.
A professora de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Renata Marquez relata que é comum que estudantes vindos de outros estados compartilhem impressões sobre o chão de BH. “Eles reparam nos chãos e seus padrões e assim muitos deles se conectam afetivamente com a cidade. O chão é uma das superfícies da cidade que compõem a paisagem. A praça Raul Soares é outro exemplo dessa memória gráfica sob os nossos pés”, pontua.
Alguns dos desenhos das calçadas são das décadas de 20 e 30 e, entre as pedras, guardam também outras memórias. Nas tampas de ferro fundido que protegem o cabeamento, lê-se uma série de nomes de empresas que foram rebatizadas ou mesmo desapareceram na história, como CTMG (a antiga Companhia Telefônica de Minas Gerais), Telemig (originada da própria CTMG), Embratel (gigante incorporada pela Claro e, hoje, encerrada) e Intelig (absorvida pela Tim no fim dos anos 2000).