Quem passa pela porta da loja Relógios Brasil, no Mercado Central de Belo Horizonte, talvez não tenha a dimensão imediata de como o comércio é importante para preservar a memória de uma cidade. Com seus relógios automáticos, de corda e peças de parede, o estabelecimento foi fundado em 1949, apenas duas décadas depois de o mercado ter saído da área onde é a atual rodoviária e ter se instalado no espaço que o tornou famoso. Desde a fundação da relojoaria, são 76 anos defendendo um ofício que poderia ter desaparecido, mas que resiste apesar dos smartwatches e do hábito de olharmos as horas no celular. E, junto com outras relojoarias antigas, a empresa continua fazendo circular a economia na capital mineira.
A loja é um dos 1.568 negócios que atuam neste segmento em BH, segundo levantamento do Sebrae Minas. O número inclui empresas que atuam com a venda de relógios, de peças e que oferecem serviços de reparação e manutenção de artigos de relojoaria. Os dados englobam as seguintes categorias: Microempreendedor Individual (MEI), Microempresa (ME), Empresa de Pequeno Porte (EPP) e Micro e Pequenas Empresas (MPEs).
Atualmente, a Relógios Brasil é comandada pelo casal Lucilene de Melo, de 47 anos, e Alexandre Augusto Santos, de 56, - que trabalhou no ramo por décadas com a venda de peças, como baterias e pulseiras, e viu no Mercado Central a chance de empreender pela primeira vez. “Comprei a loja do antigo proprietário, há cerca de oito anos, movido pela minha própria paixão. Há peças com mais de um século que funcionam até hoje, é fascinante”, afirma o proprietário.
Alexandre explica que um dos diferenciais da loja é a venda de relógios de parede ou pedestal (também chamados de coluna) antigos e raros. Muitos deles pertenciam a jovens que herdaram as peças de familiares e não se interessaram em ficar com elas - seja pelo som constante que produzem ou pelo alto custo para que voltem a funcionar. Assim, a loja adquire os relógios, conserta o maquinário e a parte externa, por meio da marcenaria, e disponibiliza os produtos para novos clientes - que desembolsam altas cifras por peças repletas de história.
“Nossa maior venda até hoje foi para um turista de Brasília, que passou pelo Mercado Central e se encantou por um relógio coluna, com cerca de 1,8 m de altura. Ele pagou R$ 25 mil e enviamos por meio de uma transportadora. Também já vendemos um relógio de bolso de ouro por R$ 14 mil. São peças valiosas pelo seu aspecto histórico, não se acham mais para comprar. É parecido com o que acontece com o mercado de carros antigos”, diz.
Para quem gosta de história, é um prato cheio. A loja já teve um relógio de parede que datava da Segunda Guerra Mundial com caixa (parte externa geralmente em madeira) feita de ouro e atualmente conta com um relógio que toca a “Ave Maria” de Franz Schubert. “Também garimpamos muita coisa em antiquários. Temos peças que, inclusive, não vendemos. Ficam de acervo em casa ou na loja, para os clientes apreciarem”, compartilha.
Para Allysson Gudu, analista institucional da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH) e museólogo, esse movimento de revitalizar peças antigas também contribui para um consumo mais sustentável. “Esse tipo de negócio promove um uso circular, uma vez que preserva peças antigas, que acabam sendo adquiridas por quem valoriza produtos com história, evitando o descarte”, acrescenta.
Além das peças de parede, os relógios de pulso também fazem sucesso por lá. Parte da vitrine exibe produtos novos, incluindo os relógios de quartzo (movidos à bateria), e outra parte conta com modelos vintages automáticos ou movidos à corda. Esses dois últimos, os chamados relógios mecânicos, são muito valorizados pelo seu maquinário complexo e artesanal e têm ajudado a atrair a geração Z (nascidos entre 1996 e 2010) para o mercado.
“Recentemente, vendemos dois modelos antigos para jovens com pouco mais de 20 anos. São peças que lembram os relógios que os avós deles tiveram no passado e essa afetividade acaba atraindo a garotada para o consumo”, aponta o empreendedor. Além disso, diversos influenciadores nas redes sociais, como o Tik Tok, fazem sucesso exibindo peças e contando suas histórias.
Mas, se o interesse dos jovens em consumir relógios antigos foi renovado, o mesmo não se pode dizer do desejo de entrar para este mercado de trabalho. Alexandre aponta que a mão de obra tem se tornado escassa, pois trata-se de um ofício “muito detalhista, que requer paciência para a sua execução e que acaba exigindo muito da visão” - por causa do tamanho minúsculo de algumas peças. Ele, inclusive, traz relógios de São João del-Rei e Barbacena, na região do Campo das Vertentes, para serem consertados em BH, uma vez que a mão de obra também anda escassa por lá.
“É um trabalho muito específico. Na loja, temos prestadores de serviço para cada tipo de relógio. Tem aquele que conserta apenas os de parede, outro que faz só a marcenaria. Para relógios de pulso, tenho um que é especialista nos modelos de corda, outro que domina os automáticos e um terceiro para os de bateria. Se eu perder qualquer um deles, sei que vai ser difícil repor. Talvez esse ofício não exista mais daqui a 20 anos”, reflete.
Galeria Ouvidor: uma “cidade do interior” dentro de BH
A pouco mais de 500 metros dali, para quem faz o trajeto a pé, está a Galeria Ouvidor. De acordo com informações da CDL/BH, o espaço funciona desde 1964 e foi o primeiro grande centro comercial da cidade. Apesar disso, quem ia lá não ia apenas para comprar. Muitos moradores aproveitaram para se divertir nas escadas rolantes, uma das primeiras da cidade.
As escadas rolantes podem até ter deixado de ser uma novidade, mas a vocação comercial do prédio segue firme após décadas e, em seu interior, habitam relojoarias que resistem através dos tempos. Uma delas, A Hora Certa, já está em sua terceira geração de comerciantes. O negócio começou com Aluisio Gomes, já falecido, que veio de Tiradentes, no Campo das Vertentes, em 1937, e abriu o negócio na década de 1960. Hoje, a loja é comandada por seu filho Adélcio Gomes, de 71 anos, e sua neta, Renata Gomes, de 40.
“Cheguei a me formar em enfermagem, mas larguei a área para entrar no negócio da família. Boa parte da minha motivação foi manter o legado dele vivo, pois trabalhar no comércio anda bem desafiador. O interessante é que ainda há clientes da época do meu avô, que vêm para comprar algo para eles ou para os netos”, comenta Renata.
Além de pai e filha, a equipe conta ainda com uma vendedora e um relojoeiro, Rosalvo Silva, de 68, que trabalha no local há cerca de seis anos. Por ser uma área com mão de obra escassa, e sem ampla renovação, os empresários contam que a experiência no ramo é muito valorizada e profissionais idosos conseguem ser absorvidos pelo mercado.
“Outro aspecto curioso é a rotatividade entre funcionários de relojoarias e joalherias dentro da própria Galeria Ouvidor. Os funcionários querem ficar aqui, pois é mais seguro que as lojas de rua e têm horário mais atrativo que os shoppings. Então, praticamente todos os lojistas e colaboradores se conhecem no prédio. É praticamente uma cidadezinha do interior”, compara Adélcio.
Apesar da constante queixa sobre a falta da mão de obra, algo oposto acontece do outro lado do corredor, onde fica a Relojoaria São Paulo. Sentado na parte da frente da loja, concentrado com suas ferramentas, está o relojoeiro Renato Garajau, de 22. Mesmo sendo jovem, ele já está há cinco anos na empresa e representa a esperança de renovação do setor. “Sempre gostei desse universo e aprendi o ofício com meu irmão”, conta.
Ele é funcionário de Sidney Vieira, de 51, que deixou a carreira de corretor de imóveis e decidiu empreender em 2013, quando abriu a relojoaria junto com um sobrinho. Diferentemente de outras lojas do segmento, que também são joalherias, o comerciante se dedica apenas à venda de relógios de pulso e de parede, além de peças, como pulseiras e baterias. “Atendo a muitas mulheres e a média dos relógios é de R$ 400”, diz.
Também chama a atenção a presença de Geraldo Magela, de 53, que não é funcionário direto do estabelecimento, mas mantém um pequeno balcão de atendimento na porta da loja, onde amola alicates e grava nomes em alianças. “Isso ajuda a dividir os custos com o aluguel do espaço e ainda ajuda a atrair clientes, que passam para realizar serviços e acabam tendo contato com os produtos”, aponta Sidney.
Do mesmo lado do corredor, mas no andar de cima, está o comerciante André Luís, de 43, um dos proprietários da Casa dos Relógios. O negócio existe há três décadas e nasceu pelas mãos do pai dele, o relojoeiro Antônio Nogueira, de 74. Apesar de André ter assumido a liderança da relojoaria, ele afirma que o fundador ainda tem muita importância no negócio e se tornou referência para outros comerciantes do ramo.
“Meu pai tem tanta expertise que outras lojas costumam terceirizar a manutenção ou conserto das peças e deixam o trabalho por conta da gente. Eu também faço algumas coisas, me dividindo entre a oficina e a administração, mas ele é imbatível para resolver problemas complexos que os clientes trazem”, elogia André.
O local, de fato, é referência na prestação de serviços. No tempo em que a reportagem esteve no local, a entrevista foi interrompida algumas vezes pela presença de diversos clientes, que buscavam todo tipo de conserto para modelos novos e antigos. Apesar da grande demanda por consertos de peças que os clientes já têm, o empresário garante que as vendas dos modelos novos também andam aquecidas por lá.
“Nos últimos seis meses estimamos uma alta de 30% nas vendas de relógios automáticos. Nosso público é formado principalmente por homens a partir dos 27 anos. Investimos em edições limitadas, como os relógios dos jogos UNO e Pac-Man, e também começamos a trabalhar com modelos movidos à energia solar”, afirma.
Para Allysson Gudu, analista institucional da CDL/BH e museólogo, as lojas da Galeria Ouvidor, do Mercado Central e os estabelecimentos do Centro de BH vão além da sua função comercial e operam como verdadeiros pontos de encontro para colecionadores e interessados em aprender mais sobre esse universo. Além disso, fortalecem o comércio de rua da cidade em tempos de vendas online.
“Muitos consumidores ainda gostam de ir ao local para experimentar, barganhar preço e socializar com os vendedores. Além disso, há uma grande memória afetiva. BH foi a primeira cidade planejada do país e uma das primeiras da América Latina. O Hipercentro é quase uma galeria a céu aberto e muitos consumidores têm esse ritual de frequentar ou descobrir novas lojas, o que mantém vivo o nosso comércio”, analisa.
O peso do ouro e os colecionadores do Facebook
Saindo da Região Central, indo em direção à Pampulha, Glenda Filgueiras, de 37, defende a empresa que o pai, Gelson, de 67, iniciou há quatro décadas com a fundação da Rafael Relojoaria - cujo nome é uma homenagem ao irmão da moça. A loja, que já teve diferentes endereços, está localizada no mesmo lugar, no ViaBrasil Pampulha, há 25 anos, e também funciona como joalheria - uma vez que a venda dessas peças é importante para manter as portas abertas.
Por lá, os relógios custam de R$ 200 a R$ 3 mil e englobam diversas marcas, como Mondaine, Casio e Seculus. O consumo dos produtos, no entanto, costuma variar conforme o sexo do cliente. “Em média, as mulheres pagam R$ 400 em um relógio, pois querem gastar o restante com outras peças. Já os homens gastam R$ 1.000 com facilidade, uma vez que não têm muitas outras opções de acessórios”, aponta Glenda.
Apesar de os relógios não segurarem sozinhos as contas da loja, ela afirma que percebeu uma melhora de pelo menos 80% nas vendas desse item no último ano. “Com a valorização do ouro, eles acabam sendo mais acessíveis do que outros acessórios, como jóias e semi jóias. Acredito que esse tenha sido um dos fatores para o crescimento”, afirma.
De fato, o ouro anda em alta e o seu preço aumentou mais de 40% no último ano. No fim de abril, subiu acima de US$ 3.500 por onça troy (medida para metais preciosos que equivale a 31.1034768 gramas). Isso representou um recorde histórico, mesmo levando em conta a inflação, ultrapassando o pico anterior registrado em janeiro de 1980. Naquela época, o preço em dólar era de US$ 850, ou US$ 3.493 nos dias de hoje.
Além do peso do ouro no orçamento, ela também aponta um desaquecimento na empolgação dos consumidores em relação aos smartwatches. “Eles demandam carga constante e as pessoas já estão sobrecarregadas com outros aparelhos, como celulares e fones de ouvido sem fio. Além disso, ficam obsoletos mais rapidamente em comparação aos relógios tradicionais, que podem durar décadas”, compara.
Paralelamente à venda dos relógios, o pai de Glenda também continua firme e forte no conserto das peças, que engloba troca de bateria e manutenção. Essa prestação de serviço, aliás, também acaba atraindo clientes que vão até à loja para reparar peças mais antigas e, em algum momento, acabam comprando um relógio novo.
Muitos deles chegam lá por indicação do colecionador Ramon, de 40, fundador do grupo Seiko Brasil no Facebook, que reúne mais de 20 mil membros. Ele tem cerca de 60 relógios da marca, incluindo peças contemporâneas e outras produzidas a partir da década de 1960, e conta que costuma ser bastante “assediado” nas redes sociais por colecionadores mundo afora. “O mercado está muito aquecido. Se eu quisesse vender todos os relógios que tenho, não haveria dificuldade. Porém, são peças das quais realmente gosto muito”, revela.
Mercado de luxo continua se renovando
Veterano no mercado de alto nível, o empresário mineiro Manoel Bernardes, de 70, faz uma comparação com as joias para explicar como os relógios resistem ao tempo e continuam despertando interesse. “O valor deles não está só na sua função de contar as horas”, declara. Para ele, a indústria suíça, responsável por marcas como Cartier, Rolex e Breitling, entendeu que o luxo está na valorização do trabalho manual, no uso de insumos preciosos e raros e na sofisticação da mecânica criada.
“A indústria vende storytelling (arte de contar histórias) e estilo de vida. Cada marca tem um cliente alvo e cada relógio acaba cumprindo um objetivo. Algumas peças são mais esportivas, outras remetem à valorização do sucesso. Você compra uma ideia”, explica.
Não por acaso, o empresário conta que o modelo internacional mais consumido em suas lojas é o Rolex. A marca, fundada em 1905, tem conseguido se renovar, ao mesmo tempo em que valoriza sua história e usa esse passado para mostrar que cada peça justifica os valores cobrados por ela. O preço de um relógio dessa marca, que começa em R$ 50 mil, é só um detalhe para quem tem desejo e condição de fazer parte da cartela de clientes.
“O Rolex é líder mundial, chega a vender três vezes mais que a segunda colocada. A marca soube construir uma aura que resiste e só cresce. Além disso, sabem trabalhar o conceito de imagem junto aos seus embaixadores, o que mantém o público e traz novos consumidores”, aponta. Um deles é o tenista brasileiro João Fonseca, de 18, que se tornou um dos embaixadores da marca em 2024.
Além dos aspectos da peça em si, Manoel garante que a experiência no ponto de venda também é fundamental para cativar o cliente e gerar negócios. Ele usa, mais uma vez, o exemplo do Rolex como padrão de excelência. “Não se vende um relógio desses em site, é toda uma experiência controlada, com mobília padrão no mundo todo. O cliente vai até à loja para entender como o relógio funciona e experimentar no pulso. Tudo isso gera valor.”