Durante quase quatro décadas, a agricultora e quitandeira Maria de Fátima Carvalho, de 70 anos, viu os dejetos de sua residência serem depositados em um buraco no quintal. A chamada fossa negra, que não possui qualquer tipo de tratamento, ainda é muito presente na zona rural e apresenta riscos significativos de contaminação do solo e das águas subterrâneas. Sem falar no mau cheiro, especialmente em época de calor.
Desde 2023, porém, Fatinha, como é conhecida, viu essa realidade se transformar. No mesmo local, foi instalada uma fossa tevap (sigla para tanques de evapotranspiração) - um modo sustentável e seguro de se tratar os excrementos de quem não tem acesso à rede geral de esgoto.
A fossa tevap é uma das soluções ecológicas mais acessíveis para que os pequenos produtores possam implementar a sustentabilidade no campo, protegendo recursos hídricos. “Agora, não corremos mais o risco de contaminar o lençol freático. É uma garantia para nós e para as próximas gerações”, afirma Geraldo Francisco de Carvalho, de 68, marido de Fatinha.
Fatinha e Geraldo moram na zona rural de Itabirito, na região Central de Minas, em uma casa que pertenceu à família dele. A fossa negra, portanto, foi uma “herança danosa” que passou de geração em geração, cujo ciclo foi interrompido pelo projeto desenvolvido pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater).
O casal é uma das 40 famílias que fazem parte da Associação dos Produtores da Agricultura Familiar de Itabirito (Apafi). Além de criarem galinhas para vender os ovos, os dois cultivam produtos como tomate, feijão, hortaliças e milho, e participam do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que estipula que 30% da merenda escolar seja fornecida pela agricultura familiar.
“Não jogar esgoto no lençol freático nos dá tranquilidade de que todas essas atividades vão continuar de uma maneira mais sustentável”, afirma Fatinha.
Após conhecer o projeto por meio da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Semapa) de Itabirito, o casal investiu cerca de R$ 5.000 na construção da nova fossa - que foi coberta por lírios do brejo. “Também é bom para a comunidade. Estamos a poucos metros do Rio Carioca e a fossa evita que os dejetos sejam despejados lá. Infelizmente, chegamos a fazer isso antigamente por falta de recursos”, lembra Geraldo.
Como funciona a fossa tevap?
A fossa tevap pode ser feita com materiais recicláveis e tem boa durabilidade, chegando a ficar mais de 20 anos ativa. De acordo com a Emater, a estrutura, implantada em mais de 4.000 propriedades em 300 municípios mineiros desde 2011, evita que mais de 220 milhões de litros de esgoto sejam lançados no ambiente a cada ano. Estima-se que, por ano, uma família de quatro pessoas produz 50 mil litros de esgoto.
A estrutura consiste em um tanque escavado e impermeabilizado, com bloco furado ou ferrocimento. Nela é construído um túnel de pneus usados. Na altura do pneu, de um lado e de outro, são acrescentadas pedras ou entulho limpo. Depois, os pneus são cobertos com sacos de ráfia, cerca de 10 cm de brita e mais 10 cm de areia, finalizando com 30 cm de terra, onde é plantado um jardim. A boa qualidade das plantas é um sinal de que o sistema está funcionando bem.
Dentro da fossa, o efluente que vem do banheiro entra no túnel de pneus e passa por fermentação - as próprias bactérias do esgoto vão digerir a matéria orgânica. Depois, esse material é transformado em moléculas menores, subindo pelas camadas filtrantes até chegar na raiz das plantas, onde vai funcionar como adubo. E é por meio das plantas que acontece a evapotranspiração (evaporação de água + transpiração de plantas), ação que dá o nome para esse tipo de fossa.
Além da fossa tevap, que recebe apenas os dejetos do vaso sanitário, Fatinha e Geraldo também construíram uma fossa cinza na propriedade - um sistema de tratamento de águas residuais provenientes de pias, chuveiros e máquinas de lavar. De acordo com Jane Terezinha da Costa Pereira Leal, Coordenadora Técnica da Emater-MG, essa separação é fundamental para preservar o solo e o lençol freático.
“O esgoto que vem do vaso sanitário é o mais prejudicial e o que mais traz riscos de poluição e contaminação. Isso porque ele concentra um grande número de patógenos, que são os micro-organismos do nosso intestino. Tratar e devolver esse material para a natureza de forma correta é uma alternativa sustentável para que o produtor tenha água e um solo de qualidade, podendo produzir alimentos saudáveis, sem contaminação biológica”, explica a especialista.
Jane também destaca que a maior parte dos pequenos produtores rurais, como é o caso de Fatinha e Geraldo, utilizam poços artesianos para captação da água - o que torna projetos como o da fossa tevap ainda mais relevantes para a proteção dos recursos hídricos em pequenas propriedades rurais.
Pequenos produtores fazem a diferença
Quem também foi apresentado ao projeto de fossa tevap há mais de dois anos é Vicente de Paula da Silva, de 67. Lavrador, ele tem uma propriedade de 4 hectares na zona rural de Florestal, na Grande BH, onde cultiva milho e cria alguns porcos. Ele conta que, há 8 anos, quando passou a cuidar do local após uma divisão de herança, abriu uma fossa comum. Ele queria, na verdade, investir em um biodigestor, mas sairia muito caro. “Eu sabia que a fossa não era o ideal. Mas a gente vai fazendo o que é prioridade primeiro”, conta.
Foi a filha dele quem alertou sobre a nova solução apresentada pela Emater. A construção da fossa contou com ajuda de mais de 60 pessoas, segundo Vicente. “O padrão é 2 metros, mas eu fiz 5 porque meus filhos de vez em quando vão passear na roça”, comenta. “Ficou bonitinho, parece um jardim”, diz.
O professor Flávio Gonçalves de Oliveira, do Instituto de Ciências Agrárias (ICA/UFMG), reforça que os pequenos produtores são a principal preocupação no quesito impacto ambiental e “fazem a diferença” na busca por um agronegócio mais sustentável.
“O pequeno produtor é quem costuma não ter acesso às informações de manejo e cuidados com o meio ambiente. Então, é aí que entra o papel da universidade, formando técnicos que têm essa percepção ambiental, e da Emater, que trabalham a extensão rural e repassam a informação tecnológica que a pesquisa gera para esses pequenos produtores”, comenta.
Rede de esgoto é raridade nas comunidades rurais
No meio rural, Maria de Fátima, Geraldo e Vicente fazem parte da parcela da população que não tem acesso à rede de esgoto. De acordo com o IBGE, em 2023, 88,4% dos domicílios em situação rural no Brasil tinham banheiro de uso exclusivo, mas só 9,6% tinham escoamento do esgoto pela rede geral ou fossa séptica ligada à rede geral.
O Novo Marco do Saneamento, de 2020, estabeleceu metas de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033. Em Minas Gerais, o programa Universaliza Minas, lançado pela Copasa em 5 de maio de 2023, é uma das iniciativas que visam atender à legislação.
O programa já investiu, até o momento, R$ 412 milhões para levar água potável e esgoto a 322 mil moradores das comunidades rurais distantes dos centros urbanos. A iniciativa já impactou 169 municípios.
Círculo de bananeira ajuda no tratamento das “águas cinzas”
Enquanto o esgoto do banheiro vai para a fossa tevap, as águas que vêm da pia da cozinha, chuveiro ou lavanderia, chamadas de águas cinzas, também podem ter um destino mais sustentável. Uma das alternativas propostas pela Emater é o projeto Círculo de Bananeiras, que promove a infiltração controlada das águas cinzas no solo. Em MG, cerca de 1.500 propriedades já contam com essa tecnologia, segundo a Emater.
“Essas águas são caracterizadas por terem sabão e gordura e carregar a sujeira que sai da higienização dos nossos corpos, das roupas e das vasilhas”, descreve Jane. Por não serem águas contaminadas por patógenos, elas podem ser dispensadas em uma área de plantação de alimentos. Diferente da fossa tevap, cujos dejetos só podem servir como nutrição de plantas ornamentais.
O projeto do Círculo de Bananeiras consiste em um círculo escavado no solo, com profundidade de 60 cm e diâmetro de 1,4 m, coberto por material palhoso, como pequenos galhos, folhas e outros restos vegetais. Em volta, são cultivadas bananeiras, que têm alta demanda hídrica e ajudam a tirar a umidade do solo. Trata-se de uma proposta mais simples.
“Inclusive, pode consumir a banana, sem problema nenhum. A única exigência que a gente faz é que se instale uma caixa de gordura para o que sai da pia da cozinha, porque ela pode causar uma camada que não deixa a água infiltrar no solo”, pontua.
Para quem cria gado, esterqueiras
Já os produtores rurais que criam vacas para produção de leite, por exemplo, é necessário pensar além do esgoto doméstico. Isso porque a criação de bovinos demanda alto consumo de água e lavagem das fezes e da urina dos animais pode poluir gravemente o solo. “Se ele não tiver uma alternativa correta, aquele caldo verde vai escorrer para o ambiente, contaminando solo, água e lençol freático”, pontua Jane Terezinha.
A solução, nesse caso, está nas lagoas de estabilização, também chamadas de esterqueiras, que estabilizam esse material por cerca de 100 dias. Elas são feitas com um material especial para impermeabilizar o solo, impedindo a infiltração de efluentes. “A gente pode dizer que o material passa por um processo de cura”, sintetiza.
Nesse processo, os microrganismos naturalmente presentes no solo vão produzir um líquido que, depois, será utilizado como biofertilizante (produto usado no processo de fertirrigação - aplicação de fertilizantes por meio da irrigação). “É um procedimento de levar nutrientes para o solo, sobretudo nitrogênio, fósforo, potássio e também a parte biológica resultante do processo na esterqueira. A gente tem recuperação do solo, melhoria de pastagem e melhoria das culturas”, diz Jane.
A Emater já implantou cerca de 200 esterqueiras no estado. Para uma propriedade pequena, com 30 vacas em lactação, o preço da esterqueira varia entre R$ 12 mil e R$ 15 mil - valor que, em um ano, é 100% recuperado, se considerar a economia do produtor com os biofertilizantes.
Quem tem uma esterqueira na propriedade é Maurício Hernane de Andrade e Silva, de 40 anos, de Guanhães, no Vale do Rio Doce. Produtor de leite e gado de recria, ele investiu R$ 20 mil na construção da estrutura e de um sistema de drenagem, que foi necessário por conta das condições do solo. O tanque produz cerca de 600 mil litros de biofertilizante por ano, volume que é totalmente utilizado na fazenda, incluindo a pastagem do gado e uma plantação de milho.
A ideia foi apresentada pela Emater há um ano, meses depois de Maurício investir em uma ampliação na propriedade, que saiu de cinco animais para 50 vacas em lactação para a produção de leite. Antes da esterqueira, os resíduos eram despejados no solo e iam parar em um córrego perto dali, formando uma água turva, lama e muito mau cheiro. A solução ajudou a recuperar totalmente o curso d’água. “Você tinha que ver como ficou o córrego depois. Fica a esterqueira acima e uma água cristalina correndo abaixo”, comemora o produtor.