Uma criança com talento para o desenho sobrevive nas ruas de uma cidade brasileira vendendo caricaturas de turistas, mas não vai alcançar o estrelato como artista. Ao mesmo tempo, uma jovem negra formada em engenharia, a primeira de sua família a se formar na faculdade, recebe sucessivos “Não” em suas entrevistas de emprego porque não tem o “perfil procurado” pelas empresas, segundo elas. Essas são duas anedotas, fincadas no mundo real, que o Banco Mundial utiliza em seu relatório mais recente para escancarar a falta de oportunidades no Brasil, onde 40% do potencial humano das crianças é desperdiçado. 

O Índice de Capital Humano (ICH) estima a produtividade que uma criança de hoje terá no mercado de trabalho aos 18 anos. O cálculo leva em conta a saúde infantil, os anos de escolaridade e a taxa de sobrevivência na idade adulta. Ou seja, quanto melhor o acesso à saúde e à educação ao longo da vida, maiores as chances de todo o talento ser aproveitado. 

O valor máximo do índice é 1 e significa que, na idade adulta, a criança atingirá seu máximo potencial. O ICH do Brasil é, hoje, 0,6, isto é, uma criança nascida em 2019 exercita apenas 60% do seu potencial. “40% de todo o talento brasileiro permanece retido, invisível para a sociedade”, diz o relatório. No ritmo atual, o Brasil levará 60 anos para atingir o ICH de países ricos, deixando gerações para trás sem desenvolver plenamente seu potencial.

Considerando-se as taxa de emprego no Brasil, a situação fica mais drástica: somente 38% do capital humano potencial é atingido pelos brasileiros. Nesse cenário, a mão de obra qualificada do país opta cada vez pelo êxodo do Brasil e arrisca uma carreira no exterior, por exemplo. 

Crianças do Norte e Nordeste têm menos chance de desenvolver seu potencial

Com o olhar para a desigualdade social, é comum dizer que o país são “muitos Brasis”, o que o ICH do Banco Mundial também comprova. Uma criança nascida nas regiões Norte e Nordeste só desenvolverá cerca de metade do seu potencial, aproximadamente dez pontos percentuais abaixo da média nacional. O ICH de Estados dessas regiões em 2019 era o mesmo de Estados do Centro-Sul, Sudeste e Sul em 2007. 

“Os dados brasileiros mostram que os avanços têm sido lentos, desequilibrados e desiguais”, pontua o Banco Mundial. O relatório acrescenta que os municípios com ICH mais elevado em 2007 permanecem no topo de lista e os com menor índice continuam na esteira.

Potencial das mulheres é menos utilizado no mercado de trabalho

As mulheres têm um ICH em média mais elevado do que o dos homens — elas tendem a abandonar menos a escola para trabalhar e têm uma expectativa de vida maior. O índice entre elas chega a 0,6 e, entre eles, 0,53. Mas o cenário muda de figura quando o Banco Mundial avalia quanto desse potencial de fato é aproveitado no mercado de trabalho.

Essa análise é resumida pelo Índice de Capital Humano Utilizado (ICHU). Para os homens, ele é de 0,4 e para as mulheres, 0,32. Isso significa que, quando elas chegam ao mercado, mesmo com um capital acumulado maior, seu talento é menos aproveitado. 

A disparidade também ocorre entre brancos e negros. O ICH para a população branca avançou 14,6% no Brasil desde 2007, enquanto a população negra teve um avanço menor, de 10,2%. Indígenas praticamente não avançaram, com aumento de menos de 1% do índice. “Enquanto as pessoas brancas prosperam, negros e indígenas ficam cada vez mais para trás”, destaca o relatório. 

Pandemia derrubou ICH brasileiro ao patamar de uma década atrás

Simulações do Banco Mundial mostra queda do ICH entre 2019 e 2021 de 0,6 para 0,54, empurrando o Brasil para o mesmo patamar de 2009. Os dois fatores que mais pressionaram a queda foi a educação, com 50% de redução ligada aos anos esperados de escolaridade, e a saúde dos adultos, que caiu 30% devido à diminuição da taxa de sobrevivência. Levando-se em conta a taxa de crescimento antes da pandemia, o ICH brasleiro levará de 10 a 13 anos para alcançar o patamar de 2019, que já era considerado baixo.

“O Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, deve proteger crianças e adolescentes das consequências sanitárias e socioemocionais da pandemia. Como desigualdades preexistentes tendem a se agravar, o programa brasileiro de transferência condicionada de renda, conhecido como um dos mais bem-sucedidos do mundo, deve ser fortalecido para apoiar grupos de pessoas mais afetados pela pandemia de Covid-19.4 As recentes reformas nacionais de flexibilização do currículo e a promoção de um financiamento mais equitativo na educação também devem ser mantidas e reforçadas”, enfatiza o relatório.