Crise

Sem pesca, horta e turistas

Rios de Mariana e Brumadinho não dão mais o sustento para famílias; em Macacos, eventos acabaram

Por Ludmila Pizarro e Queila Ariadne
Publicado em 23 de junho de 2019 | 03:00
 
 
 
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As perdas que ocorrem com o rompimento de uma barragem, ou com o risco iminente de isso ocorrer, vão além do fim de um emprego ou renda mensal. Elas podem envolver um modo de vida. A lama, ou a sua sombra, também pode quebrar sistemas econômicos. E assim, o prejuízo de um se transforma na perda de muitos, seja na pesca, na agricultura ou no comércio. O pescador Adelmo Gualdiano Martins, 59, perdeu sua fonte de renda quando os rejeitos de minério inundaram o rio do Carmo após o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, em 2015. “Com a pesca e minha horta, eu sustentava dois filhos e um neto”, afirma. Além do sustento, ele perdeu sua fonte de alimentação e o local onde vendia os peixes. “A pesca eu comia, e o que sobrava vendia. Morreu tudo por causa da lama. Voltei para tentar pescar, mas quase não tem peixe mais. O que tem, não tenho coragem de comer, muito menos vender. E quem vai comprar?”, questiona.

Para o produtor de leite Marino D’Ângelo Júnior, 50, que teve propriedades atingidas pela lama de Fundão, o desmembramento das comunidades é um entrave à retomada. “Minha produção alimentava a região. Agora, eu vou vender para quem? Não tem como recomeçar a vida aqui”, diz. D’Ângelo está cadastrado para ser reassentado, mas afirma que quer ser indenizado e comprar terras em Viçosa.

D’Ângelo também se alimentava de sua produção. “A gente tinha plantação de tomatinho-cereja, comia e dava para os vizinhos. Após o rompimento, fui ao supermercado e descobri que uma bandejinha do que eu tinha com fartura custa R$ 7”, diz.

Esse círculo virtuoso também foi rompido para Vera Lúcia Rocha, 66. Ela não plantava, mas foi diretamente afetada com o fim das atividades das hortas em Parque da Cachoeira, zona rural de Brumadinho. “Minha principal clientela era o pessoal das hortas e os moradores da rua São Mateus, justamente os lugares mais atingidos pela lama. Tenho mercadoria, como silicone, que até perdeu a validade”, conta. Vera tenta, junto à Vale, ser incluída na lista dos comerciantes atingidos que serão indenizados. Ainda não conseguiu.

Professora de sociologia da UFMG e membro do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), Raquel Oliveira explica que esses modos de produção são tradicionais. “A tradicionalidade é formada por redes de realização de trabalho, envolve o grupo e a sociabilidade”, diz.

Mesmo sem um rompimento, o risco (nível 3 de emergência) que envolve a barragem B3/B4 da mina Mar Azul, da Vale, faz Macacos, distrito de Nova Lima, sentir a quebra no sistema econômico. Werner Glik, 54, dono do espaço de eventos Sebastião, em Macacos, realizava 60 casamentos, todos os sábados do ano. Depois do acionamento da sirene, em fevereiro deste ano, perdeu 30% dos contratos já assinados para 2019 e ainda não fechou nenhum para 2020. “Eram 200 pessoas por casamento, que ocupavam as pousadas e comiam nos restaurantes. A cada evento, eram 30 contratações, que agora não faço mais”, conta.

Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram que, em abril, comércio e serviços tiveram 1.018 desligamentos em Nova Lima, 39,5% a mais em relação a abril de 2018. “Quem vinha olhar um terreno, passava o fim de semana, movimentava a cidade”, relata André Lamego, da imobiliária Casa Lamego. “Há quatro meses meu telefone não toca. Mantenho o negócio com minhas reservas e os aluguéis que já estavam contratados”, diz Lamego. Ele tinha quatro funcionários e agora só mantém uma secretária.

Mineradores seguem sem ajuda

São 650 pescadores e mineradores artesanais (os chamados “garimpeiros”) que retiravam do rio Doce e afluentes, como os rios do Carmo e Gualaxo, o seu sustento. Eles se revezam na ocupação do escritório da Fundação Renova, em Mariana, desde 4 de junho, em busca de reconhecimento como atingidos pelo rompimento de Fundão, que despejou mais de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos no rio Doce em 2015.

Aloísio Martins, 81, conta que começou “no garimpo” aos 15 anos. “Minha família não sabia fazer outra coisa para não morrer de fome. Meu avô garimpou, meu pai também”, diz. “Eles falam que o garimpo é ilegal. Quem são essas empresas para falar de meio ambiente?”, indaga Hermínio do Nascimento, 46, minerador artesanal desde os 16.

Segundo o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado (MPMG) em Mariana, Guilherme Meneghin, o argumento não existe. “Não se pode confundir mineradores artesanais, que existem desde a fundação de Minas, com garimpeiros, termo carregado de estigma e preconceito”, afirma. Segundo Meneghin, desde 2016 o MPMG e o Ministério Público Federal recomendam que a Renova os reconheça como atingidos. “Uma recomendação que ela insiste em não seguir”, afirma.

Na última quarta-feira, a Renova se reuniu com uma comissão de representantes da ocupação e negou, novamente, o reconhecimento dos mineradores artesanais como atingidos. “A Renova não reconhece a situação de vulnerabilidade desses atingidos, ao negar até uma cesta básica”, critica a antropóloga Andréa Zhouri.

Por nota, a Renova diz que são “elegíveis” aos programas de reparação “garimpeiros que sejam parte de comunidade tradicional diretamente atingida e que exerçam atividades apenas no âmbito de seus costumes e tradições”.

A entidade também informou que precisa terminar um “estudo” para definir a situação desses atingidos e que o prazo para isso é novembro deste ano.

Pescador do Gualaxo busca reparação

Assim como outros pescadores da região de Barra Longa, Silvio Terêncio Alves, 70, não recebeu auxílio financeiro emergencial da Fundação Renova. “Eu só quero, de reparação, o que eu tirava com os peixes, porque antes eu pegava bagre, traíra, podia comer sem susto e ainda tirava um dinheirinho. Agora não tem como”, lamenta.

Segundo ele, seu faturamento mensal com a pesca era de R$ 300. O pescador, que pescava há 18 anos no rio Gualaxo, participa da ocupação da sede do escritório da Renova em Mariana. Desde 3 de junho, dezenas de atingidos estão no local cobrando mais agilidade da fundação nas soluções dos problemas causados pelo rompimento da barragem de Fundão.

Por nota, a Renova informa que, para pagar o benefício aos “pescadores informais”, é necessário criar “um critério” e “mapear o perfil das comunidades pesqueiras para a construção da cartografia da cadeia de pesca local”. “A alta informalidade que predomina no território atingido, onde a maior parte dos danos não pode ser comprovada documentalmente, é o maior desafio da Fundação”, diz a nota. Em Minas 4.200 pescadores já receberam algum auxílio, somando R$ 358 milhões.

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