BRASÍLIA - O fazendeiro Luiz Carlos Ribeiro da Silva, de 52 anos, saía de uma loja da Avenida Brasil Sul, em Anápolis (GO), quando foi surpreendido com disparos vindos de um corsa sedan preto, em 6 de dezembro de 2022. Com seis tiros em diferentes partes do corpo, ele caiu morto na traseira da própria caminhonete. Era noite, mas havia muitas pessoas no local. Mesmo com diversas testemunhas e uma investigação conduzida por uma delegacia especializada há quase dois anos, o crime ainda não foi desvendado. E o mistério tem servido de combustível para adversários políticos em meio à campanha pelo comando da mais rica cidade goiana.

Anápolis é o terceiro município mais populoso do Estado, com 415 mil habitantes, e distante 50 km de Goiânia e 140 km de Brasília. A cidade é cortada por uma ferrovia e algumas das principais rodovias federais, sendo o maior polo industrial de Goiás, com grandes farmacêuticas. Empresário do setor, o prefeito Roberto Naves (Republicanos) era um dos melhores amigos de Luiz da Silva. Sem poder concorrer à reeleição por estar no segundo mandato consecutivo, ele apoia Eerizania Freitas, do União Brasil, para sucedê-lo. 

Ela, que foi a principal secretária da gestão Roberto Naves, tendo comandado as pastas do Desenvolvimento Social, Educação e a Secretaria de Integração Social, Cultura e Esporte,  também tem como padrinho político o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, seu colega de partido. Eerizania também tem como forte aliada a deputada estadual Vivian Naves (PP), primeira-dama de Anápolis. Já o vice-governador, Daniel Vilela (MDB), está fechado com o candidato do PL, Márcio Correa. 

Supostos trechos do inquérito sobre a morte de Luiz da Silva têm sido divulgados em redes sociais para levantar suspeitas contra Roberto Naves e, de tabela, atingir Eerizania Freitas. Aliados do prefeito fazem o mesmo contra Márcio Correa. Os dois foram ouvidos pelos investigadores, mas o caso tramita em segredo de Justiça. Oficialmente, ninguém sabe o que de fato há contra um ou outro. Nem mesmo se são suspeitos de algo ou meras testemunhas. Em nota, o atual prefeito disse confiar nas polícias goianas e que o assassinato de um dos seus “melhores amigos será desvendado e a verdade virá à tona”. Correa não se pronunciou.

Em fevereiro de 2023, peritos exumaram o corpo de Luiz da Silva, que foi levado para o Instituto Médico Legal (IML) para “exames complementares”. No início desta semana, diante da falta de respostas para o crime e de tantas especulações, a direção da Polícia Civil tirou o inquérito da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e entregou-o à Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios (DIH), à Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Superintendência de Inteligência. Ninguém falou em prazo nem deu qualquer informação sobre os rumos da investigação.

PM suspeito se matou ao receber mandado de prisão

Enquanto isso, o sargento da Polícia Militar Welton da Silva Vieiga, investigado pela execução do fazendeiro em dezembro de 2022, morreu após receber policiais civis em casa, em Anápolis, em 27 de janeiro de 2023. Conforme boletim de ocorrência, quando os agentes chegaram na casa do PM para cumprir o mandado de prisão, ele atirou. Os agentes revidaram. Mas ele teria morrido com um tiro da própria arma, em um suicídio. 

No entanto, antes de se matar, Welton atingiu duas vezes um policial civil que entrou na sala de sua residência. Um dos tiros que feriu o agente acertou também a perna de outro, que estava atrás. A dinâmica foi descrita em laudo da perícia da Polícia Civil. Durante o cumprimento do mandado, foi detida uma PM que estava com Welton. Ela alegou não ter visto os disparos. Disse que só viu o corpo do sargento caído e foi à área externa, quando se rendeu.

Welton Vieiga era investigado pela morte de Luiz da Silva porque o carro de onde saíram os tiros contra o fazendeiro foi levado à casa do sargento após o crime. A Polícia Civil ainda não apresentou informações sobre quem mandou matar o amigo do prefeito. Nem o motivo e quem eram os homens no carro usado no crime. Tampouco a motivação. O certo é que nada levaram da vítima, não houve roubo. 

Sargento morto era acusado em crime político que envolve primo de Caiado

O sargento Vieiga também respondia a um processo desde 2014 por integrar um grupo de extermínio. O esquadrão da morte estaria envolvido em outro crime de grande repercussão no município e em todo Goiás. A vítima foi o empresário Fábio Alves Escobar Cavalcante. A execução ocorreu em 23 de junho de 2021. Um dos autores, segundo a investigação, Jorge Caiado, primo do governador Ronaldo Caiado.

Outras sete pessoas foram executadas para esconder evidências da morte de Escobar, incluindo uma mulher grávida de sete meses. Além de Vieiga, outros 11 PMs goianos foram acusados de envolvimento nos crimes. O Ministério Público de Goiás denunciou Jorge Caiado, que era assessor da Assembleia Legislativa (Alego), à Justiça, em março de 2024. Uma semana depois, três juízes o transformaram em réu por entender que há evidências suficientes. 

O plano que acabou em assassinatos em série, de acordo com o MP goiano, foram as denúncias feitas por Fábio Escobar contra Carlos César Savastano de Toledo, o Cacai, ex-integrante do governo de Goiás na gestão de Ronaldo Caiado. Com mandado de prisão contra ele, Cacai fugiu em novembro, quando houve uma operação para prender suspeitos de participação no homicídio. Em dezembro, ele foi denunciado à Justiça pelo homicídio. A Justiça acatou. Policiais civis goianos prenderam Cacai em Brasília, em 3 de junho.

Então presidente do partido Democratas [atual União Brasil] de Anápolis, Cacai coordenou a vitoriosa campanha política do então senador Ronaldo Caiado em 2018 e, com o início do mandato, ganhou o cargo de diretor administrativo da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Goiás (Codego). Em 2020, foi preso por suspeita de fraudes em licitações na estatal e perdeu o cargo.

Escobar trabalhou ao lado de Cacai na campanha que elegeu Caiado em 2018. Reeleito em 2022, Caiado é um dos nomes cotados para concorrer à Presidência da República em 2026, como opção da direita na ausência de Jair Bolsonaro (PL), tornado inelegível. Caiado tem o nome citado no inquérito, mas não é alvo de investigação. Em rara declaração sobre o caso, em entrevista à revista Veja, em maio último, o governador questionou a seriedade da apuração e disse que ela serve para atrapalhar seus planos políticos.

“Esse Escobar tinha graves conflitos com empresas, licitações lá na cidade de Anápolis. Que identifiquem tudo. Eu sou o maior interessado no esclarecimento desse fato. Mas grande parte disso tem a ver com o momento em que meu nome aparece (como candidato). Isso tem o intuito de ir me desgastando. Isso foi usado pelo Luciano Bivar [ex-presidente do União Brasil]”, afirmou Ronaldo Caiado. 

Relatório final do MP sobre o caso traz uma troca de mensagens entre Escobar e Ronaldo Caiado, por meio de Whatsapp. No diálogo, o empresário disse ao governador que iria apagar as denúncias contra Cacai de suas redes sociais porque temia por sua vida e de sua família. Escobar publicou um vídeo em rede social dizendo que havia tentado se encontrar pessoalmente com Caiado para detalhar a denúncia. 

“Eu só tenho uma questão aqui. Governador, o senhor não me recebeu, não quis me escutar, sabendo que eu fiz parte do projeto do DEM, seis anos, acreditando no seu governo. Governo esse que até agora não mostrou a que veio, independente de pandemia ou não”, afirmou o empresário.

Já Cacai e Escobar viraram inimigos. O empresário, que viria a ser assassinado, também passou a criticar a gestão de Ronaldo Caiado, por meio das redes sociais. “Caiado despreza as pessoas sem estudo. Nem todo mundo é filho de fazendeiro e tem oportunidade de fazer faculdade de medicina”, disse em uma das suas publicações. Caiado é formado em medicina e integra uma tradicional família de fazendeiros de Goiás. 

Ex-assessor de Caiado é apontado como mentor de execução

Contra Cacai, Escobar foi mais longe. Também pelas redes sociais, passou a denunciar o coordenador da campanha de Caiado em Anápolis por supostos desvios de dinheiro. Em vídeo publicado na internet, Escobar mostrava o momento em que devolvia R$ 150 mil, que ele dizia ter recebido de Cacai como suborno para interromper as denúncias. 

“Eu recebi uma tentativa de suborno. Através de um intermediário, de um empresário, R$ 150 mil. E a pessoa que veio me entregar o dinheiro é mais ou menos assim, ou pega ou morre. Pois bem, logo que ele me entregou esse dinheiro eu fui lá no escritório desse empresário, devolvi os 150 mil [reais], gravei, esse vídeo vai para o amanhã e dia primeiro vou entregar para o promotor. E aí a Justiça vai mostrar quem que é o vilão e quem que é a vítima. […] Eu tenho Deus na minha vida, tenho dois filhos para criar, mas não vou ficar calado com medo de morrer, porque Deus sabe a hora de todo mundo”, afirmou Escobar.

Pouco antes de morrer, Escobar entrou em um táxi para se encontrar com um homem chamado “Fernando” que havia entrado em contato com ele supostamente interessado em vender uma lavanderia no bairro Jamil Miguel, em Anápolis. Escobar, que trabalhava no ramo de lavanderias, contou ao taxista que queria vistoriar o imóvel. Mas o tal Fernando nunca apareceu. Assim que deixou o táxi, Escobar levou quatro tiros disparados por dois homens que saíram de um Fiat Uno com os rostos cobertos por balaclavas. O empresário ainda foi socorrido pelo taxista, mas morreu logo que chegou ao hospital.

O MP de Goiás denunciou Cacai como o mentor da execução. Já PMs respondem por essa morte e pelas outras sete, que serviriam para encobrir o assassinato de Escobar. O MP incluiu Jorge Caiado como um dos denunciados, por ter “incentivado” e “prestado auxílio” na execução do plano que levou à morte de Escobar. 

MP diz que primo de Caiado usou de influência na Secretaria de Segurança

O MP de Goiás acusa Jorge Caiado de usar sua influência na Secretaria de Segurança do Goiás para ajudar no planejamento do assassinato. “Ressalte-se que se não fosse o traquejo de Jorge Caiado e influência com autoridades policiais, Carlos Toledo, por si só, não teria atingido seu desiderato criminoso”, frisam os promotores que assinam a denúncia do episódio que ficou conhecido como Caso Escobar.

Conforme a denúncia do MP, Jorge Caiado apresentou Cacai ao sargento Welton Vieiga, o mesmo apontado como suspeito de envolvimento na morte do fazendeiro amigo do prefeito de Anápolis. Vieiga aceitou comandar o assassinato de Fábio Escobar e cooptou os também policiais militares Thiago Marcelino Machado, Glauko Olívio de Oliveira e Érick Pereira da Silva para auxiliá-lo no assassinato de Escobar, ainda segundo o MP.

Em dezembro de 2023, dois oficiais da PM de Goiás, contaram, em depoimento ao MP, que haviam sido procurados por Jorge Caiado com pedido para matar Fábio Escobar. Ambos garantiram ter rechaçado a proposta. Um deles havia sido chefe da Casa Militar na administração de Ronaldo Caiado.

Já os 12 PMs acusados de envolvimento nos assassinatos do Caso Escobar acabaram promovidos por “atos de bravura”, com medalhas, por participaram de confrontos com supostos bandidos. No entanto, segundo o MP, tais confrontos foram execuções para queima de arquivo, com simulações que incluíram alterações das cenas dos crimes, com armas “plantadas”.

Policiais encontraram provas dos crimes em celular de ex-assessor de Caiado

Cacai foi preso em 2020 na Operação Negociatas, por suspeita de fraude na Codego, em que ele comandava na gestão de Ronaldo Caiado. Na ocasião, policiais apreenderam o celular dele. Peritos recuperaram mensagens com pedidos para policiais “perseguirem, grampearem e espancarem” Fábio Escobar.

Promotores de Justiça que cuidaram do caso dizem que tudo foi meticulosamente pensado para dificultar a investigação. Cacai e Jorge Caiado não são citados como envolvidos na morte das outras sete pessoas, assassinadas para esconder provas. Em muitos casos, PMs simularam confrontos para justificar as mortes das vítimas, que teriam testemunhado a execução de Escobar ou tinham informações sobre o caso. 

Durante a investigação sobre o Caso Escobar, policiais civis usaram a quebra de sigilo bancário e telefônico para corroborar as provas de envolvimento dos PMs denunciados. Eles identificaram movimentações bancárias incompatíveis com os rendimentos da Polícia Militar. O policial militar Marcos Jesus Rodrigues movimentou cerca de R$ 6 milhões em quatro anos. Já Almir Tomás de Aquino Moura, também PM, movimentou R$ 5,8 milhões.