O retorno, a memória e o devir – este constante tornar-se algo, sempre transitório e incompleto – são conceitos, ou, para além do horizonte das ideias, sensações comuns às experiências propostas nas três novas exposições inauguradas no Inhotim a partir deste sábado (19), que, reunindo artistas de diferentes matrizes, regiões e gerações, apresentam obras feitas em contextos, formatos e suportes diversos entre si.

Em exibição ao menos pelos próximos dois anos no museu e jardim botânico estão a instalação imersiva Homo sapiens sapiens, da suíça Pipilotti Rist, filmada no Inhotim em 2004, dois anos antes da abertura do espaço para a visitação pública, e exibida originalmente na Bienal de Veneza em 2005, que só agora, duas décadas depois, é apresentada no lugar onde foi concebida; a obra comissionada Apenas depois da chuva, da baiana Rebeca Carapiá, artista que integrou uma mostra coletiva – Direito à forma– no museu no ano passado; e Tangolomango, da belo-horizontina Rivane Neuenschwander, que, desde 2009, apresenta no Inhotim a obra Continente/Nuvem, instalada em uma casa construída em 1874, remanescente da fazenda que existia no terreno antes da chegada do instituto.

Nos três casos, portanto, as inaugurações têm também um sentido de retorno, sensação confirmada por Júlia Rebouças, diretora artística do lugar. “Podemos, sim, trazer esse olhar para uma ideia do retorno, o que tem tudo a ver com o nosso modo de trabalhar o acervo que temos. É uma característica que está no DNA do Inhotim, instituição que foge um pouco dessa ideia de exposições temáticas. Nosso programa, por outro lado, foca na pessoa-artista, pensando na melhor maneira de mostrar aquele trabalho e, a partir da obra, vai criar essas relações e temáticas”, avalia.

No caso de Pipilotti Rist, esse reencontro 20 anos depois – embora seja verdade que, antes disso, em 2015, o Inhotim tenha levado essa mesma obra para uma mostra no Palácio das Artes, mas em escala mais modesta – surge como um acontecimento natural, em uma experiência que, logo de início, convida a um ritual de aconchego e intimidade: ao entrar na Galeria Fonte, somos convidados a descalçar sapatos, enquanto a trilha sonora – assinada pela artista em parceria com Anders Guggisberg e homônima à obra – ocupa a sala, cujas paredes de vidro ganham filtros de luz, alterando a iluminação do espaço.

Público na obra Homo sapiens sapiens, de Pipilotti Rist
Público na obra Homo sapiens sapiens, de Pipilotti Rist | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Toda essa liturgia tem seu efeito, nos encapsulando em uma experiência apartada do mundo externo, que só faz se acentuar à medida que caminhamos, sobre o chão almofadado por tapetes, em corredores formados por cortinas. É caminhando por essa estrutura, na penumbra, que chegamos à área ventral da galeria, onde uma videoinstalação é projetada no teto – de forma que precisamos nos deitar para assisti-la. Mais uma vez, um rito que nos convida ao relaxamento e intimidade necessários diante de uma composição lisérgica, que tem por cenário o jardim botânico do Inhotim, no encontro entre Mata Atlântica e Cerrado. 

Curiosamente, é quando nos distancia do mundo externo que Pipilotti volta a nos oferecê-lo em imagens de duas décadas atrás. E, ali, diante de nossos olhos, esse mundo se transmuta em outro, como um Éden – “mas um Éden sem Adão”, comenta o curador Douglas de Freitas.

Com essa dinâmica, não seria demais dizer, ela parece atualizar um conhecido postulado de Carlos Drummond de Andrade, que, aparece subtítulo de “Boitempo” (1968): “Esquecer para lembrar”. É também do itabirano a obra Cerâmica, em que, a seu modo, volta a falar sobre a memória, tema recorrente em sua obra. “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./ Sem uso,/ ela nos espia do aparador”. Um poema que, certa maneira, nos empresta modos de descrever a individual de Rivane Neuenschwander, Tangolomango, exposta na Galeria Mata

Nela, a belo-horizontina apresenta trabalhos em diversas linguagens, como pintura, fotografia, instalação e vídeo. Obras, aliás, feitas em diferentes períodos e, agora, atualizados por força de pesquisas mais recentes da artista, interessada em discutir temas como infância, história, ecologia e política, que são evocados e potencializados pela reunião de trabalhos que vão de Andando em Círculos, do ano 2000, passando por Zé Carioca e seus amigos, de 2005, e Cabra-cega, de 2016, e chegando a realizações mais recentes, como V.G.T. (Ame-o ou deixe-o) e J.B. (Piracema: uma transa pós-ama-zônica), ambos de 2023, além de Trôpego Trópico e Eu sou uma arara, de 2022.

Rivane Neuenschwander na Galeria Mata, onde apresenta Tangolomango | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
Rivane Neuenschwander na Galeria Mata, onde apresenta Tangolomango | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Como na xícara de Drummond, que está ali, no aparador, sempre à espreita, compondo a paisagem por mais que, por vezes, nos esqueçamos dela, que, com seus cacos colados, ameaça os descuidados, Rivane coloca em evidência memórias perenes, mesmo que, eventualmente, nos escapem. Uma das paredes, por exemplo, é ocupada por pequenos quadros com representações de seres que parecem saídos de pesadelos, representações de sonhos infantis. Outras encarnações de temores, imaginários ou nem tanto, ganham a forma de pequenas esculturas – estão lá criaturas como O Capeta, A Morte, O Terraplanista, O Banqueiro.

“Já tenho pesquisado esse assunto da memória relacionada à infância há um bom tempo, inclusive fazendo uma intersecção com a psicanálise. Com o tempo, fui tomando consciência de como o meu trabalho estava atrelado a esse tema, de forma que, aqui (na galeria), tem obras de diferentes épocas, mas que têm esses eixos comuns” estabelece a artista, acrescentando que realiza, na exposição, uma compilação de memórias infantis de diferentes pessoas, que vão desvelar em outras questões.

“Por exemplo, o (trabalho) Zé Carioca e seus amigos vem de uma recordação de criança, mas ao mesmo tempo, fala de algo que, embora seja aparentemente inofensivo, tem toda uma carga política: este é um personagem criado no começo da década de 1940 pelos estúdios Walt Disney no contexto da Guerra Fria, representando uma tentativa (dos Estados Unidos) de fazer a política da boa vizinhança para a América Latina. Então, tem também essa camada de como o jogo infantil e jogo político estão entrelaçados”, reflete ela que, como já mencionado, apresenta no museu, desde 2009, um trabalho umbilicalmente ligado à memória do próprio Inhotim ao ocupar uma construção remanescente da antiga fazenda que ocupava o lugar.

Vídeo integra a exposição Tangolomango no Inhotim
Vídeo integra a exposição Tangolomango no Inhotim | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Por fim, para Rebeca Carapiá, o tema também aparece em relevo, mas sob uma perspectiva que parece se aproximar mais da noção de “escrevivência”, de Conceição Evaristo, que propõe um escrever que parte das experiências da vida cotidiana e das lembranças para demarcar a existência de personagens e lugares marcados pela vivência “que foi minha e dos meus”, como a própria autora descreve.

Um trabalho alinhado a um objetivo caro ao museu – “a retomada da aquisição de obras comissionadas, mantendo um olhar para artistas da sociedade que estão agenciando narrativas sobre o presente, interessando as pessoas conectadas ao nosso tempo”, como explica Júlia Rebouças –, há algo dessa escrevivência em Apenas depois da chuva, obra criada a pedido do instituto e a partir de uma imersão da artista na Serra da Capivara, no Piauí. Na obra, ela reflete sobre a relação entre a água e o território por meio de uma instalação escultórica composta de 20 peças, com cerca de cinco metros cada, exibida no lago próximo à Galeria Mata e à Galeria True Rouge, paisagem de destaque do museu e jardim botânico. Um tema que perpassa sua própria história.

Rebeca Carapiá em frente a estruturas escultóricas que compõem Apenas depois da chuva
Rebeca Carapiá em frente a estruturas escultóricas que compõem Apenas depois da chuva | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

“Eu estou pensando aqui a imensidão dessas memórias, que me fazem pensar o que representa a água na minha existência, pensando que eu venho da Cidade Baixa, de Salvador, que é um lugar de assentamento, um lugar que também sofre com as enchentes, que se relaciona com as águas de muitas maneiras. Mas, em minha trajetória artística, estou criando um processo poético que não tenta reiterar o trauma, não tenta refazê-lo: este é um trabalho celebrativo, que expande minhas expectativas e perspectivas”, estabelece.

De fato, ainda que possa ser entendida como uma continuação da pesquisa de Rebeca sobre a interação entre elementos naturais e escultóricos, formas e paisagens, a obra que agora apresenta é, paradoxalmente, carregada de ineditismo: esta é a primeira vez que a artista experimenta, em seu processo de criação, trabalhar em colaboração com uma equipe, no caso, liderada por Gabriel Silva Santiago, o Seu Gabriel, que coordenou a serralharia do Inhotim, possibilitando a criação de um trabalho que alcança certa monumentalidade. Para ela, aliás, o inédito e a memória não são classificações antagônicas, mas complementares. “Essa perspectiva de memória que eu trago no meu trabalho não vem de um desejo ou interesse de retornar ao passado, mas, sim, de construir futuros, a partir do que propõe Leda Maria Martins ao dizer que podemos ser o nosso ancestral”, examina.

Visitante fotografa obra de Rebeca Carapiá em exposição no Inhotim
Visitante fotografa obra de Rebeca Carapiá em exposição no Inhotim | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

A partir do conjunto dos trabalhos das três artistas, aliás, pode-se acrescentar que, se podemos ser, no presente, nosso ancestral, pode ele – o nosso ancestral, nós mesmos – não ser humano ou, ao menos, recusar um certo tipo de humanidade – exploratória, violenta – para, então, se humanizar. É neste aspecto que, mais uma vez, os trabalhos de Pipilotti Rist, Rivane Neuenschwander e Rebeca Carapiá voltam a se encontrar diante de uma proposta polifônica de – por meio do retorno, da memória – mergulhar no devir, no vir a ser: plantas sem raízes, como sugere a artista suíça; leito de rio e curso d`água, na proposta da baiana; ou arara azul, em um quase faz-de-conta infantil, urgente ao mundo adulto, defendido pela belo-horizontina.

SERVIÇO: 
O quê. Abertura das exposições Homo sapiens sapiens, de Pipilotti Rist, Apenas depois da chuva, de Rebeca Carapiá, e Tangolomango, de Rivane Neuenschwander;
Quando. Neste sábado (19), a partir das 9h30. Visitação de quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30;
Onde. Instituto Inhotim (rua B, 20 Fazenda Inhotim, Brumadinho);
Quanto. A partir de R$ 25 (meia). Crianças até 5 anos não pagam. Gratuidade nas quartas-feiras e no último domingo do mês.