Joana D’Arc não se conteve diante do Cavaleiro da Triste Figura. “O que primeiro me chamou a atenção foi o nome, que nos faz ‘cavalgar’ no mundo da imaginação e do desconhecido”, conta a professora aposentada de 80 anos, que mantém uma assídua carreira de escritora, referindo-se à livraria Quixote, cujo batismo alude ao mais famoso romance de Miguel de Cervantes, “Dom Quixote de La Mancha”, publicado em 1605 e hoje um clássico da literatura mundial. Ao fundar esse espaço aconchegante na Savassi, coração de Belo Horizonte, o livreiro Alencar Perdigão decidiu “tirar a pompa do ‘Dom’, ficar só com o ‘Quixote’...”, reforçando o “espírito quixotesco” da empreitada.
“É um dos meus livros favoritos, li pela primeira vez com 17, 18 anos, e fiquei alucinado com esse personagem que era um grande leitor, e, para o bem ou para o mal, foi com a influência da leitura que ele saiu para consertar o mundo, o que ele achava que estava fora do lugar. Todo mundo entrou no universo do Quixote, o cura deixou de ser o cura, o barbeiro deixou de ser apenas um barbeiro. E eu me pergunto se o Quixote estava louco ou o mundo. É a loucura do livro ou a lucidez dos livros?”, questiona Alencar, que não deixa de prestar agradecimentos a Cláudia Masini, com quem é casado há mais de 30 anos e sua sócia na livraria, comparando-a à Dulcineia idealizada por Dom Quixote.
“Alencar sempre foi o livreiro, o sonhador, que quer voar. E eu sou aquele ponto de equilíbrio. A gente consegue conciliar muito bem, naturalmente, encontrando um caminho de sensibilidade, afinidade, desejo e de amor aos livros”, afirma Cláudia, que entrega a criação de um termo específico entre os clientes, associado à livraria.
“Muitas pessoas dizem que vêm aqui fazer ‘quixoterapia’, e para a gente também funciona assim. Quando estamos desanimando, retomamos a energia com esses encontros”, revela Cláudia. A arquiteta Tainah Drummond, de 35 anos, começou a frequentar a livraria na época da adolescência, levada pelos pais, que tinham, por hábito, tomar um café da manhã e passear na região, aproveitando para conferir os últimos lançamentos.
Foi na Quixote que Tainah descobriu o verso poético da mineira Ana Martins Marques e se encantou com a irreverência concisa de Paulo Leminski. “A poesia me acompanha a vida toda”, conta Tainah, que herdou da mãe, a psicóloga Janethe Ramos, de 56 anos, o gosto pela literatura japonesa. “Sempre gostei muito das indicações que eu recebia aqui na Quixote. Às vezes vinha pensando num livro, e saía com dez. E, agora, estou comprando para o meu neto, que vai fazer 3 aninhos, mas já tem uma biblioteca invejável!”, diverte-se Janethe. Também psicólogo, o marido Régis Ramos, de 57 anos, destaca “o acervo diversificado e refinado” da livraria. “É um mercado que está se transformando, mas o leitor que ama os livros vai continuar fiel ao papel”, aposta Régis.
Moinhos de vento
Para quem está no ramo de uma pequena livraria há mais de 21 anos, “lutando contra todos esses moinhos de vento”, como é o caso da Quixote, a concorrência de gigantes do mercado digital é um dos principais desafios contemporâneos. “A gente segue meio que na contramão de tudo que está acontecendo. Nossa livraria não se baseia apenas na venda do livro, porque isso você compra com um clique na internet e com o preço mais barato. Somos um ponto de encontro, onde se trocam afetos, é um lugar de acolhimento”, sustenta Alencar, que prima por uma seleção criteriosa dos livros que ocupam as suas estantes e costumam atrair “professores, jornalistas, psicanalistas e intelectuais de maneira geral” no espaço de 70 m² que ele tem à sua disposição para utilizar da maneira “mais literária possível”.
“Fazemos a opção de não trabalhar com autoajuda empresarial e coisas do gênero. A gente tem focado em questões atuais, ligadas à pauta LGBT, à negritude e à escrita feminina, procurando dar nossa contribuição para tirar esse atraso imposto pelo domínio do patriarcado e da branquitude”, informa Alencar, orgulhoso de “ter criado na cidade um perfil seguido por outras livrarias”.
No quarteirão da Quixote, por sinal, foi colocada uma placa com os dizeres “Rua da Literatura”, sobre a escultura em tamanho real de Dom Quixote, que se transformou em ponto turístico e aguça a curiosidade das crianças. Em frente, como parte de sua “missão pedagógica”, Alencar criou uma biblioteca coletiva que é continuamente alimentada, tanto por ele quanto pelos clientes.
“A literatura é um gesto solitário, um mergulho, um jeito de viajar sem sair do lugar que te transporta para outras culturas e vivências”, define Alencar. Dono da renomada livraria Scriptum, Welbert Belfort, conhecido entre os mais íntimos como “Betinho da Scriptum”, sublinha essa mesma percepção.
“A literatura era a forma de conhecer outras culturas cuja beleza eu não tinha a dimensão”, diz ele, recordando os primeiros contatos com a arte que tornou-se seu ofício e ganha-pão. Sem capital de giro, com parte da biblioteca que ele adquiriu depois de estudar em escolas públicas de Ouro Preto e Mariana, trabalhar como office-boy, cursar disciplinas de História e Literatura e ser contratado por uma rede de livrarias, Betinho e a esposa decidiram investir no sonho, “com muita disposição para eventos em universidades de BH, Rio e São Paulo”.
Viajando pelas páginas da literatura
“Assim, me tornei um caixeiro viajante”, observa Betinho, que, além do espaço físico da Scriptum, vende livros de Literatura, Ciências Sociais e Psicanálise através da internet para todo o Brasil. Para Betinho, “investir na formação de leitores é o que modificaria o mercado”. “Hoje, a equação é inversa”, lamenta. Quando a tradicional Livraria Ouvidor, que funcionou durante mais de meio século, anunciou, em 2022, que iria fechar as portas, Fred Pinho e Tatiane Fontes atenderam ao impulso de não deixar vago “um espaço de livros na cidade”.
E assim nasceu a Jenipapo. “Preciso dizer que éramos assíduos frequentadores da antiga livraria e reconhecíamos a importância que ela exercia na cidade, como lugar de formação de leitores e difusão da literatura”, diz Fred, que, tal como seus pares, pleiteia “a aprovação da Lei Cortez no Congresso Nacional”.
“Seria um passo importante, não apenas para a sobrevivência das pequenas livrarias, mas para a sustentabilidade e bibliodiversidade de todo o mercado editorial”, pontua Fred, ao abordar o projeto da então senadora Fátima Bezerra (PT), de 2015, que estabelece um preço fixo para os livros durante o primeiro ano após o lançamento, com um desconto máximo de 10%, o que já ocorre em países como França e Alemanha.
“Manter uma livraria independente não é fácil. Um dos problemas, obviamente, é a concorrência desleal praticada pelo comércio eletrônico. Por isso é tão importante pensar em estratégias de regulação de preços no mercado livreiro”, defende Fred, que se vale desse poder único das palavras para passar o seu recado. “A gente não pensa em resistir. A gente pensa em existir! Ocupar o nosso lugar de cultura e de formação de leitores. E, nesse sentido, somos muito diferentes das plataformas digitais!”, arremata.
Realizando sonhos literários
Julia Alfa tinha o sonho de publicar um livro. Aos 23 anos, ela consumou o desejo graças a anúncios no Instagram, onde conheceu o trabalho da editora Caravana. “Comecei a seguir, e, em pouco tempo, abriu um edital de livros para poesias, e eu decidi participar”, conta a autora de “Observador de Pássaros”, centrado nas temáticas da depressão e da ansiedade.
“O processo de publicação foi simples e ocorreu bem depressa. A edição física ficou linda, eles promoveram um evento de lançamento e eu pude ter um contato maior com o público, além das redes sociais”, celebra Julia, que, ao mesmo tempo, ressente-se duma “distribuição melhor, em mais livrarias e websites”. “Entendo que é complicado por se tratar de uma editora pequena”, pondera ela, que enaltece a “vital importância” dessas iniciativas, “para quem quer dar o primeiro passo”.
Fundador da Caravana, Leonardo Costaneto conta que a editora surgiu há sete anos, em Buenos Aires, na Argentina, a partir de formatos artesanais. “Foi um sucesso, uma volta ao passado no estilo de impressão”, recorda. Todavia, “para seguir no mercado”, eles decidiram migrar para o modelo convencional. “Hoje, nos estabelecemos como uma das principais editoras do país”, garante Costaneto.
A sede, em Ouro Preto, “recebe autores de todo país para residência criativa”. “De modo que conheçam nossa origem mineira, e, claro, portenha também, pois todos os anos levamos quase uma centena de artistas e amantes da literatura para uma imersão cultural na Argentina, levando aos leitores ‘hermanos’ vários títulos nossos traduzidos”, informa Costaneto, que tem, no catálogo, prosa, poesia, ensaio e infantojuvenil de novatos e consagrados.
Desviando a rota
Ele diz que aprendeu com o escritor Olavo Romano, seu antigo editor sênior, morto no ano passado, aos 85 anos, “que há espaço para todos e que devemos apoiar quem tem o sonho de ver seu livro publicado”. “Foram quase dois mil autores lançados até aqui, a partir, sobretudo, de contratos de cessão de direitos, ou seja, com custeio da própria Caravana, o que permitiu nosso ‘boom’ país afora”, comemora Costaneto.
Fundadora da Relicário, Maíra Nassif descreve a editora, nascida em 2013, como “um desvio feliz” em seu planejamento profissional. Ela tinha acabado de concluir o mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG, quando recebeu “a indicação de um amigo para trabalhar em uma editora que estava procurando pessoas com perfil acadêmico para a produção editorial”. “Como eu queria mesmo fazer uma pausa na atividade estritamente acadêmica, acabei topando essa empreitada!”, rememora Maíra.
Nessa ocupação “totalmente nova e inesperada”, Maíra descobriu que era “exatamente isso” o que ela queria: “Editar livros, trabalhar com eles não apenas usando-os, mas também produzindo-os”. “Depois de dois anos como produtora editorial, tive a ideia de fundar a Relicário, para publicar livros relacionados à minha formação e desejos de leitura. Este ano completamos 11 anos. Possuímos uma sede física que se encontra no bairro Floresta, em Belo Horizonte”, conta Maíra, que, entre teoria, crítica literária, estética, filosofia da arte, psicanálise e afins, oferece um olhar especial para a produção de mulheres e escritoras latino-americanas.
“Gostamos de publicar autoras já conhecidas do público, mas também nos interessa fazer trabalhos de resgate editorial, com obras que foram reconhecidas tardiamente, e merecem novas edições”, diz Maíra. Como exemplos, ela cita a argentina Sara Gallardo e a brasileira Maria Lúcia Alvim, autora de “Batendo Pasto”, vencedor do prêmio Jabuti em 2021, e da qual a editora se prepara para publicar sua “Poesia Reunida”.
Compromisso com o leitor
“As editoras independentes e as pequenas livrarias têm o interesse comum de trabalhar a bibliodiversidade, com títulos de qualidade que não estão na lista dos mais vendidos e geralmente não se encontram nas livrarias dos shoppings”, opina Maíra. A professora do programa de pós-graduação em Letras da PUC Minas, Priscila Campello, concorda. Em 2023, ela traduziu a obra “Cartas do Cairo”, da egípcia Pauline Kaldas, para a editora Fino Traço.
“As pequenas editoras atendem às demandas de públicos e temáticas específicas. Penso que estão menos focadas em atingir o grande público e têm um compromisso maior com leitor e autor. A desvantagem é o custo alto da produção”, analisa Priscila. Álvaro Gentil, que, após cultivar muita experiência como livreiro do Cine Belas Artes e da Asa de Papel, decidiu plantar a sua editora Ramalhete, em 2015, compartilha essa impressão.
“Nesse mundo das pequenas editoras e livrarias de rua têm muitos grandes autores, pessoas talentosíssimas, e essa comunhão, esse diálogo permanente entre autor e editora é o que propicia a realização de sonhos”, afiança Álvaro, que não deixa de tocar “nos custos altos, que dificultam essa sobrevivência” de uma pequena editora.
Nada disso, porém, deteve o escritor Ricardo Murad na busca de seu objetivo. Em dezembro, ele estreia como romancista com “Paralaxe”, lançado pela editora Quixote+Do, iniciativa de Alencar Perdigão, Cláudia Masini e Luciana Tanure, que completa sete anos em 2024. “‘Paralaxe’ é o meu primeiro romance de ficção, escrito durante a pandemia. A trama conta a história de Ana e Natan, dois palíndromos perfeitos que não se conhecem pessoalmente, mas passam um mês na casa um do outro. Ela é uma arquiteta uruguaia que vem para Belo Horizonte, ele é um jornalista de BH que vai para Montevidéu”, detalha Murad, para quem “as editoras independentes cumprem um papel fundamental de lançamento de novos autores, curadoria, memória”.
Enigma contemporâneo
“Já mataram o livro físico muitas vezes desde o surgimento do e-book. Mas ele segue aí, mais vivo do que nunca. Eu, particularmente, acho o livro de papel a maior tecnologia já inventada na história, tanto em termos de matéria quanto de substância”, complementa Murad. Livreiro durante uma década, o inquieto Afonso Borges, criador do “Sempre Um Papo” e de diversas feiras literárias Brasil afora, chegou a ter cinco livrarias em Belo Horizonte.
“Cidade sem livraria é péssimo”, dispara Afonso. “A livraria é uma extensão do campo do conhecimento. E o amor aos livros é a base da nossa formação”, sublinha ele, que enxerga como paradoxal esse momento da História. “Ao mesmo tempo que não existe espaço para divulgar livros nos jornais, o crescimento dos influenciadores digitais literários é exponencial. Ao mesmo tempo que a Câmara Brasileira do Livro informa, com pesquisas, que o brasileiro lê pouco, nunca na história da Humanidade se escreveu e leu tanto, em outras plataformas. É um enigma”, conclui.