Rocinante. Este é o nome do cavalo que leva Dom Quixote de La Mancha, personagem do clássico literário de Miguel de Cervantes, em sua luta contra os dragões imaginários, os moinhos de vento que, na cultura popular, ficaram associados não só a uma ideia de delírio, mas também àqueles que são sonhadores, aos que perseguem utopias. A expressão da língua espanhola, geralmente traduzida como “cavalo comum”, vem se tornando, no Brasil, sinônimo de música: Rocinante é também o nome de uma gravadora e fábrica de discos de vinil, fundada em 2018, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, que, em sua produção, privilegia a música independente, incluindo aquela com uma verve mais experimental. 

Outra característica do selo é o cuidado estético com o acabamento dos seus LPs, cujas capas têm projeto gráfico assinado por Ana Rocha, artista paulista radicada em Belo Horizonte, onde mantém, desde 2012, a editora independente Polvilho Edições, especializada na publicação de livros de artista e suas “famílias gráficas”, como ela chama a safra de produtos associados que costumam acompanhar os lançamentos, incluindo bandeiras, carimbos e outros itens que dialogam com o universo da publicação.

A parceria com a gravadora, lembra a artista, começou meio por acaso, após ela trabalhar na produção do CD de um amigo, o músico Rafael Macedo. “Em 2018, ele estava trabalhando no lançamento do ‘Microarquiteturas’, que contava até com uma campanha de financiamento coletivo para ser viabilizado. O projeto gráfico, no caso, ficou por minha conta”, diz. Embora tenha conseguido o valor pretendido para a realização do projeto, o lançamento acabou custando mais que o esperado. “São muitas etapas, horas de estúdio, coisas difíceis de prever com exatidão”, expõe. 

Em uma dessas encruzilhadas da vida, em que as coisas vão seguindo seus próprios caminhos, mesmo que sinuosos, foi quando a empreitada parecia não dar certo que surgiu um personagem importante na trajetória de Ana Rocha, o produtor musical Sylvio Fraga, diretor artístico da gravadora Rocinante. 

Vinil da Rocinante nas mãos de Ana Rocha | Crédito: Fred Magno/O Tempo
Vinil da Rocinante nas mãos de Ana Rocha | Crédito: Fred Magno/O Tempo

“Até onde sei, ele já tinha visto o Rafa tocando em alguma ocasião – imagino que por intermédio do Thiago Amud, que também é músico e amigo dos dois –, e tinha gostado. Ele soube desse projeto, da campanha e, no final, abraçou a produção. Daí, o CD já saiu com o selo da Rocinante, no que foi o meu primeiro contato com a gravadora, que estava no seu comecinho nessa época”, contextualiza. Alguns anos depois, a artista recebeu o convite de Fraga para adaptar o projeto gráfico para o formato vinil. “É um trabalho que eu fiz e ainda não saiu, mas já abriu portas. O Sylvio adorou o trabalho e passou a me convidar para fazer outras capas”, menciona.  

Projetos gráficos

O trabalho de estreia de Ana Rocha na gravadora envolveu o disco de Erika Ribeiro, uma pianista que, neste projeto, interpreta composições de artistas como Sofia Gubaidúlina, Hermeto Pascoal e Ígor Stravinsky, cuja capa apresenta a reprodução de uma tela de Tomie Ohtake, artista visual japonesa naturalizada brasileira. “A escolha foi do próprio Sylvio, que se envolve muito com todo o projeto e sabe bem o que quer”, conta. 

Depois, vieram outros discos, incluindo um que cela a parceria de João Donato e Jards Macalé, em cuja capa os dois artistas aparecem nus, cobertos por folhas de plantas Copo-de-Leite, na fotografia icônica de Leo Aversa. Já em “Mascarada: Zé Keti por Sergio Krakowski Trio e Jards Macalé”, a escolha foi a reprodução de uma obra em giz de cera e nanquim do artista visual Iberê Camargo.

Capa do LP 'Síntese do lance', de João Donato e Jards Macalé | Crédito: Rocinante/Divulgação
Capa do LP 'Síntese do lance', de João Donato e Jards Macalé | Crédito: Rocinante/Divulgação

Um dos lançamentos mais recentes e que mais orgulham Ana Rocha é “Pra você, Ilza”, álbum do compositor e instrumentista Hermeto Pascoal, dedicado à sua mulher, Ilza Souza Silva, mãe dos seis filhos do artista, que foi sua companheira entre 1954 e 2000, ano em que faleceu, vítima de um câncer. 

“É o trabalho com o qual mais me identifico, em que, olhando agora, identifico que tem alguma coisa do primeiro livro que fiz com a Polvilho”, compara, fazendo menção à publicação seminal “Camarão que dorme”, que também usa fotografias recortadas e postas em molduras entre os poemas de Caiotta, ex-sócio de Ana Rocha. “Pela proposta do disco, pensei que seria um caminho interessante porque a fotografia tem essa característica de manter viva uma memória. E é isso que essas músicas do Hermeto fazem”, reflete. 

“Às vezes eu nem acredito que faço essas capas. Eu particularmente adoro disco, tanto que tenho um tocador de vinil desde os meus 17 anos. Mas confesso que nunca nem imaginei que eu ia até a chance de fazer trabalhar com esse mercado e com artistas tão interessantes. Eu gosto muito desse desafio de diagramar, de fazer caber, de maneira harmônica, todas as informações essenciais”, celebra. 

Objetos de arte

Na loja física da Polvilho Edições, na Galeria São Vicente, no entorno da praça Raul Soares, as capas de vinis da Rocinante ficam expostos juntamente com outros trabalhos de Ana Rocha, incluindo livros de artistas, cartazes, bandeiras, bordados e objetos em cerâmica. O espaço era um sonho antigo da artista, que, na verdade, está em sua segunda empreitada do tipo.

“Antes, mantive uma loja no Mercado Novo, onde eu comercializava o trabalho de dezenas de artistas e editoras independentes. Mas depois de quatro anos de operações fazendo tudo sozinha, lidando com todo trabalho burocrático, fui percebendo que acabava perdendo muito tempo com essas atividades e não conseguia fazer o que gosto, a produção gráfica”, explica.

Ana Rocha na Polvilho, na Galeria São Vicente | Crédito: Fred Magno/Divulgação
Ana Rocha na Polvilho, na Galeria São Vicente | Crédito: Fred Magno/Divulgação

Como o contrato de aluguel da sala comercial estava perto do fim e ela já não se sentia em casa no lugar, decidiu encerrar as atividades e reabrir a Polvilho, agora com uma nova proposta, na Galeria São Vicente. “Tem pouco mais de um ano que vim para cá. Foi em junho do ano passado. Já vim com uma operação bem enxuta, só com as minhas coisas mesmo, seja os produtos da Polvilho, seja os além-editoriais”, menciona.

Polvilho convida

Pesarosa de ter deixado de trabalhar com itens de outros artistas e editores independentes, Ana Rocha criou o projeto Polvilho Convida, em que convidados ficam “hospedados” na loja, vendendo seus trabalhos diretamente para o público. “Eu só cedo o espaço. Toda a operação fica por conta da pessoa”, explica. A primeira experiência foi com o cartunista André Dahmer. “E deu muito certo”, comemora ela. 

A editora se diverte com o nó que a presença da loja – em uma galeria que vem sendo ocupada, principalmente, por bares – geralmente causa na cabeça dos visitantes. “Muita gente não entende nada”, reconhece, inteirando que recebe cada visitante com muita disposição para explicar a proposta do lugar, apresentar o seu trabalho e o dos discos da Rocinante.