Um homem septuagenário, negro, de macacão colorido, caminha com auxílio de muletas por uma rua escura da Vila dos Marmiteiros, na Zona Oeste de Belo Horizonte. Quando se aproxima, vemos seu rosto severo cruzar a tela da esquerda para a direita, enquanto a câmera se detém na parede ao fundo, que exibe uma pintura de um jovem forte com um berimbau na mão, onde se lê: “a lenda viva da capoeira”.
Como preconiza o orixá Exu nas filosofias afrodiaspóricas, passado e futuro se entrecruzam ali, num prenúncio do que será o filme. O que vemos na sequência são cortes rápidos de imagens de arquivo onde um jovem Mestre Dunga joga Capoeira como se estivesse em transe, em movimentos impressionantes e perigosos.
O filme então alterna para uma cena diurna, que acompanha Amadeu Martins em sua vida privada, em casa, assistindo a uma aula online do curso de graduação em Educação Física. Sua paciência dura pouco e ele começa uma batida sincopada na mesa para depois contar sobre uma professora que teve na infância, Dona Erundina, que não o permitia sentar na carteira da frente da sala e o colocava de castigo ajoelhado no milho.
Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2024, em outra cena ele vai falar sobre a importância da educação para as crianças do bairro, que treinam com ele em seu terreiro, a Senzala, em Belo Horizonte. É quando o documentário começa sutilmente um “jogo” que se repetirá outras vezes: “você é o Dunga”, ele diz a um de seus pupilos, e assim conduz a narrativa da aula (e do filme).
Dirigido por Felipe Canedo, também autor do roteiro, produzido por Lucas Campolina, Mariana Andrade e Pedro Hilário, AMADEU foi feito com recursos do edital Olhar Independente, viabilizados pela Ancine e Codemge, com produção da Olada e co-produção da Almôndega Filmes. “Foi um desafio e uma responsabilidade enorme retratar um personagem tão complexo e cativante. No processo de pesquisa do filme, passamos a treinar com o mestre semanalmente e nossa relação mudou. Começamos a pesquisa há sete anos, hoje tenho no mestre um amigo e um guia”, afirma o diretor.
Logo ao início da narrativa, aos seis minutos, em uma roda conduzida por Dunga, a câmera entra no jogo, em um longo plano-sequência, uma subjetiva do jogador – o diretor de fotografia e Capoeira Bernard Machado –, uma câmera-corpo que gira e se esquiva de golpes para enfim se ajoelhar ao pé do berimbau como se pedisse benção para iniciar uma peleja com o espectador.
Sem se alongar em explicações verbais e depoimentos, a obra busca conduzir o espectador como faz a Capoeira, através do canto e das sensações, das expressões dos corpos e das performances. Em uma das sequências em que o mestre assume o papel de diretor em cena, ele narra quando foi preso na Praça Sete, por diversos policiais, que utilizaram uma rede para apanhá-lo.
“Bamba tem que ter história. Bamba é quem já foi preso pela ditadura, quem sofreu, quem já fez alguma coisa pela Capoeira”, afirma, no único momento em que ele fala para a câmera em uma entrevista formal. Palavras que são mais que um recado aos mais jovens que hoje se acham maiorais, são também um auto de fé, de um homem que acertou e errou muitas vezes, guiado por sua coragem e sua paixão pela Capoeira.
“Esse filme é muito importante para a história da Capoeira de Minas Gerais e do Brasil. É um filme que mostra a ciência da Capoeira”, afirma o protagonista, Amadeu Martins. A narrativa intercala momentos diurnos, em que o Dunga de hoje rememora suas façanhas, comenta fotos e vídeos com nostalgia, canta e reencontra amigos; e cenas noturnas, em uma delas ele rememora uma luta famosa que teve com o professor de Karatê Akio Yokohama.
Na mesma sequência, ele conduz uma roda de batuque, modalidade precursora da roda de Capoeira em que não se canta, apenas instrumentos percussivos e gritos eventuais conduzem o jogo, que é performático e rápido, e lembra em certos momentos rituais de religiões de matriz africana.
Ao longo de seus 52 minutos, o filme também acompanha uma sessão de massagem conduzida por Dunga, uma roda de rua na Praça Sete, um dia de obras em seu terreiro Senzala, com o mestre de obras e de Capoeira, Anastácio, e uma visita à matriarca do Quilombo do Açude, na Serra do Cipó, Dona Mercês. Por isso, por acompanhar a rotina de um mestre de cultura popular idoso, AMADEU pode emocionar e inspirar também quem não é da Capoeira.
O filme estreia na 28ª edição do Forumdoc, nos dias 30 de novembro, às 15h, no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e em 01 de dezembro, às 19h, no Cine Santa Tereza. Antes dessa sessão, será realizada uma roda de capoeira conduzida por Grão-Mestre Dunga, como parte da programação do festival, na Praça Duque de Caxias, às 17h.