Duas icônicas personagens retratadas na literatura e teledramaturgia brasileiras, ambas mulheres e mineiras, vão virar ópera. Hilda Furacão estreia primeiro, chegando a Belo Horizonte no dia 21 de novembro sob a batuta da Orquestra Ouro Preto (antes a produção passa por São Paulo nos dias 5 e 6). Já Xica da Silva, figura histórica que viveu no século XVIII, no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, ganha sua versão operística em 2026, por encomenda da Fundação Clóvis Salgado (FCS), mobilizando a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, o Coral Lírico e a Cia. de Dança Palácio das Artes.

Baseada no romance homônimo de Roberto Drummond de 1991, Hilda Furacão já foi levada para a TV, na forma de uma minissérie exibida pela Globo com a protagonista vivida por Ana Paula Arósio. O papel, na nova adaptação, é assumido pela mezzo-soprano Carla Rizzi. Já o tenor Jabez Lima encarna o jovem frei Malthus, personagem que, interpretado por Rodrigo Santoro na televisão, lida com o dilema entre seguir sua vocação sacerdotal ou se render à paixão.

O maestro Rodrigo Toffolo reconhece que realizar o projeto é desafiador, sobretudo por se tratar de uma personagem que já habita o imaginário popular. Mas ele pondera que a nova versão não concorre com as anteriores, seja na literatura ou na teledramaturgia. “São produtos distintos e complementares, por isso, não cabe comparação”, avalia, acrescendo que, na verdade, a escolha está alinhada à identidade da própria Orquestra: “Queremos criar um novo catálogo operístico, com temas modernos, em que a cultura contemporânea brasileira apareça e as pessoas se reconheçam, se sintam próximas. Nesse sentido, Hilda Furacão é uma boa resposta, tanto pelo o que a personagem representa quanto por ser uma forma de aproximação com o público”, explica.

Esta, aliás, será a segunda incursão da Orquestra Ouro Preto pelo universo da ópera. A estreia, no formato, foi com outro título popular: “O Auto da Compadecida”, obra original de Ariano Suassuna que se tornou um clássico do cinema nacional com Selton Mello e Matheus Nachtergaele como protagonistas. A empreitada, classificada como bem-sucedida pelo regente, pavimentou o caminho para a montagem de novos trabalhos operísticos. “O nosso objetivo, agora, é trabalhar de forma perene, com o formato”, estabelece Toffolo, antecipando que o grupo já tem uma terceira montagem em ebulição – o tema, no entanto, permanece em segredo.

Público aplaude a ópera 'Auto da Compadecida', da Orquestra Ouro Preto, no Palácio das Artes | Crédito: Rapha Garcia/Divulgação
Público aplaude a ópera 'Auto da Compadecida', da Orquestra Ouro Preto, no Palácio das Artes | Crédito: Rapha Garcia/Divulgação

O maestro destaca que, embora tenham elementos comuns, os dois espetáculos se diferenciam de muitas maneiras. “O primeiro era um texto para teatro enquanto, este segundo, é um romance, e, por isso, foi mais trabalhoso transpor sua história para um libreto”, explica, inteirando que a música original é assinada por Tim Rescala e a direção de cena de Julliano Mendes. 

“Hilda (uma mulher que abandona uma vida de prestígio para refugiar-se na zona boêmia de BH da década de 1950 e 1960) tem tudo que a gente procura em uma ópera: conflitos, reflexões, drama e comicidade balanceados. Além disso, ela é uma personagem feminina muito importante da nossa literatura, com a liberdade por princípio, mesmo que isso fosse contra as convenções sociais de sua época. Um conjunto de fatores faz dela uma protagonista ideal para esse ciclo de óperas que estamos desenvolvendo”, avalia Rodrigo Toffolo.

Características semelhantes tem Xica da Silva, personagem que existiu e fez sucesso tanto no cinema, quando foi vivida por Zezé Motta, quanto na televisão, quando ganhou a forma de uma telenovela pela extinta Manchete, sendo interpretada por Taís Araújo.

“Eu sinto que precisamos recontar essa história. Li tanta coisa sobre essa personagem, muitas histórias divergentes entre si, porque essa é uma história que perpassa fatos históricos, mas foi preservada via oralidade”, reflete Leônidas Oliveira, secretário de Estado de Cultura e Turismo. Ele cita, por exemplo, que Xica da Silva foi apresentada, muitas vezes, como uma mulher fútil. “Mas era impossível que ela fosse tão frívola em uma sociedade do século XVIII”, reflete.

“Ela tem uma história (indo de mulher escravizada à condição de uma ‘rainha’ no Brasil do século XVIII) que é uma das mais fascinantes e acredito que essa ópera vai fazer jus a essa personagem”, complementa, ponderando que, obviamente, a ópera é uma peça de ficção, não possuindo a pretensão de apresentar uma versão histórica definitiva de Xica da Silva. “Mas queremos, sim, nos aproximar da realidade dessa grande mulher”, situa. Não significa que, na montagem, a fantasia está vetada. “Sabe o que eu pensei? Em determinado momento, o João Fernandes, que era o contratador, pode fazer uma viagem a Ouro Preto, visitando o governador, quando leva com ele a Xica da Silva, no que ela encontra outra figura histórica fundamental de Minas Gerais, o Aleijadinho”, sugere.

Além da força das personagens, outros interesses por trás das novas montagens aproximam, mais uma vez, os dois projetos. “Nós entendemos que temos uma dupla missão: continuar executando clássicos do universo operístico com excelência e atrair um novo público para essa produção, o que nos levou a investir em montagens originais, com temas que tratam de Minas Gerais, sua história, arte e cultura”, define Sérgio Rodrigo Reis, presidente da FCS. Ele lembra que, em 2026, o Palácio das Artes vai realizar sua 100ª ópera em 55 anos, frisando que, portanto, o formato é uma tradição mineira que encontrou abrigo na capital mineira. “Basta lembrar que o nosso teatro mais antigo é a Casa de Ópera de Ouro Preto, o que demonstra como esse gênero é antigo no Estado”, estabelece.

Assim, encarando a missão de estrear títulos originais, a FCS realizou “Aleijadinho”, em 2022, com estreia na Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; “Matraga”, em 2023, na Gruta de Maquiné, em Cordisburgo, terra de João Guimarães Rosa; e “Devoção”, deste ano, montada no Santuário do Bom Jesus do Matozinhos, em Congonhas. “Todos os espetáculos foram apresentados, primeiro, no lugar onde a história aconteceu, que, via de regra, é um cartão postal de Minas. Uma semana depois, vieram para o Palácio das Artes, que é o lugar mais adequado para receber uma ópera, com fosso para orquestra, espaço para coral, enfim, uma estrutura completa”, ressalta, garantindo que a mesma lógica deve ser aplicada à Xica da Silva: “A ideia é fazer, primeiro, em Diamantina e, depois, em BH”, frisa Reis.

Ensaio da ópera 'Devoção', no Palácio das Artes | Crédito: Leo Bicalho/Secult
Ensaio da ópera 'Devoção', no Palácio das Artes | Crédito: Leo Bicalho/Secult

A música original do novo projeto está, presentemente, sendo produzida pelo compositor Marcus Viana. “Ele trabalha com esse tema há mais de 30 anos, antes mesmo de fazer a trilha para a novela da Manchete”, comenta Sérgio Rodrigo Reis, inteirando que o libreto é baseado no livro “Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito”, da historiadora Júnia Ferreira Furtado. “Ela fez um trabalho criterioso, que desvendou essa personagem, trazendo minúcias de sua história e afastando-a daquela figura folclórica apresentada em outras produções”, pontua.

SERVIÇO:
O quê. Estreia de Hilda Furacão, a Ópera
Quando. Nos dias 21 e 22 de novembro, às 20h
Onde. Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1537, Centro)
Quanto. A partir de R$ 20 (meia, Plateia Superior). Até R$ 80 (inteira, Plateia I). Ingressos no Eventim e na bilheteria do teatro.