“A cena em Belo Horizonte é muito promissora, com rodas diversas, ecléticas, para todo tipo de público e com apresentações todos os dias da semana, de segunda a segunda”. A análise é da pandeirista Tatá Xavier, que se apresenta em dois coletivos dedicados ao gênero em Belo Horizonte, o Chorinho de Quarta, realizado, obviamente, nas quartas-feiras, no Bar do Chico, no bairro Santa Tereza, e o Clave de Choro, que faz sua roda nas sextas, no Butequim Madureira, no bairro Aparecida.

Para a percussionista, citada como um dos expoentes da nova safra de choronas e chorões da cidade, uma das razões para a boa fase vivida na cidade está na forma como artistas veteranos recepcionam os iniciantes.

“Acho que estamos vivendo um momento muito especial porque todo mundo que está na cena está querendo fazê-la crescer. Daí, quem está tocando há 50 anos, quem inventou essa moda em Belo Horizonte, se apresenta ao lado de quem está começando agora. Eu mesma já sentei em roda com referências, como o Pereira, o Cícero, o Zito e o Zé Carlos e me senti acolhida, tocando de igual para igual”, garante.

A “qualidade da mistura” também é uma característica marcante dos grupos criados mais recentemente, como o Abre a Roda Mulheres no Choro, que congrega artistas de diferentes gerações e trajetórias e executa um repertório que vai de clássicos a composições contemporâneas.

“Temos meninas mais jovens, na casa dos 20 anos, e eu, que sou a veterana, com 65 anos”, resume  a musicista Cláudia Sampaio, uma das fundadoras do coletivo surgido em 2017 e formado exclusivamente por mulheres, que se apresenta nas terças-feiras, no Santo Boteco, no bairro São Pedro. 

Sobre as diferentes trajetórias, lembra que ela própria entrou para o universo da música há uns 15 anos, quando começou a estudar o saxofone tenor, enquanto algumas de suas colegas vêm de uma formação musical universitária. “Mesmo com menos idade, estão nessa há bem mais tempo”, observa.

Cláudia Sampaio no saxofone tenor | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

O efeito dessa confluência, defende ela, vem na forma de um adjetivo: “Em boa medida por causa disso, a cena do choro em BH está maravilhosa”.

Um gênero democrático

Na história do choro na capital mineira, a hospitalidade torna-se um ingrediente para a democratização do gênero. É o que defende Marcos Frederico, bandolinista e compositor, que se apresenta, por exemplo, no Choro de Segunda, no bar Cantina Azul, na Savassi, toda segunda-feira. 

“Sempre foi assim. Desde quando comecei, sinto que a velha guarda acolhe muito bem quem está chegando. É uma característica dessa comunidade que entende a roda de choro como uma zona muito sagrada, com códigos que você só vai entender se estiver nela”, exalta.

Marcos Frederico, bandolinista e compositor | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Artista visual que atua na música desde o início dos anos 2000, tocando cavaquinho, Rafael Zavagli, por exemplo, se reconhece como fruto dessa mistura.

“Eu escuto falar do choro daqui a partir do movimento dos anos de 1980, que era o Beco do Choro, que o Wagner, nosso violonista (no Segunda do Choro), que hoje tem 89 anos, participou, sendo um dos fundadores. E, por algum motivo, que não sei explicar, talvez essa confluência de bons músicos, a partir daquele momento a cidade vê se formarem muitos músicos excelentes. E daí, novas rodas vão surgindo, sendo descobertas, essa história vai correndo de boca em boca até que ela culmina no cenário que temos hoje”, reflete.

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Ele próprio, aliás, se iniciou nesse meio com um grupo alegórico da simbiose entre iniciados e iniciantes no chorinho: o Piolho de Cobra, um dos grupos históricos de Belo Horizonte, que reunia nomes como Mozart  e Seu Tião, considerados pioneiros na cena do choro da cidade.

Os pioneiros

Mozart, citado com intimidade por Rafael Zavagli, é o Mozart Secundido de Oliveira, artista nascido em 1923, em Bandeirinhas, distrito de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, que se muda para a capital aos 10 anos. 

“Aqui, ele trabalhou no Mercado Central, como carregador, depois virou chofer de táxi. Ele foi da época dos bondes. Então, a história dele meio que se mistura com a história da cidade”, detalha Daniela Meira, que lançou, em 2015, o documentário “Simplicidade”, dedicado ao personagem. Ela destaca que foi em BH que ele começou a tocar violão de seis cordas, passando, rapidamente, a se apresentar com as regionais das rádios, onde acompanhou grandes artistas, como Clara Nunes e Sílvio Caldas.

“Ele viveu até os 92 anos, nos deixou em 2015, e, da juventude até o fim da vida, se manteve na ativa”, ressalta Daniela, que prepara mais duas produções sobre nomes fundamentais do choro em BH. “Depois desse primeiro documentário, sentimos a necessidade de fazer mais sobre o Zito, que faz 90 anos no início de 2025, e o Zé Carlos, que fez 90 anos em outubro, que também são personagens importantes para essa cena”, detalha.

“No caso do Zito, que é pandeirista, o filme tem foco na vida dele, ouvindo também pessoas que aprenderam a tocar com ele. E sobre o Zé Carlos, que toca cavaquinho, a gente descobriu uma história curiosa, que nem todo mundo sabe, porque ele é discreto: ele costuma presentear outros músicos com instrumentos”, detalha, acrescentando que os novos títulos estão previstos para 2025.

Notadamente, essa característica acolhedora está na raiz do movimento do choro em BH, sendo marcante também na história de Mozart. “Ele também tinha essa qualidade da mistura, esse jeito agregador. Com ele, não tinha essa de ‘não sabe tocar, não pode tocar com a gente’. Pelo contrário: bastava querer e ele chamava para a roda. Por isso, ele era cercado de jovens músicos”, descreve Daniela.

Interesse acadêmico, prêmios e festivais

Além da gênese gregária do choro, capaz de reunir aprendizes e mestres em uma conversa em que todos se percebem entre iguais, o recente interesse acadêmico pela música popular brasileira, incluindo o choro, também é apontado como parte da explicação para a popularização do gênero.

“Eu percebo que as universidades estão colocando o choro em um lugar de merecido protagonismo e, com isso, temos músicos que saem da academia com conhecimento e desejo de fazer essa cena acontecer”, avalia Tatá Xavier, dizendo de uma percepção que também é compartilhada por Daniela Meira. “A gente vê muitas pessoas egressas da UFMG e da UEMG, por exemplo, nas rodas de choro de BH”, aponta. 

Outro elemento a ser considerado nesta equação são os festivais e prêmios dedicados à música instrumental realizados na cidade, fortalecendo a vertente do choro que não é cantada – justamente a que mais se desenvolveu na capital.

A análise, com um quê de testemunho, é do violonista Juarez Moreira, que, dos seus 70 anos, 50 foram dedicados à música. Para ele, BH vive, hoje, “a vitória da música instrumental, que, com muita insistência, conquistou seu espaço”. “Sou de uma época em que as pessoas me ligavam e sugeriam que eu cantasse para que, então, tivesse mais público. Mas, felizmente, essa lógica foi se transformando, e o país foi abraçando mais e mais o instrumental”, aponta.

O violonista Juarez Moreira | Crédito: Luciano Viana/Divulgação

O músico cita projetos como o BH Instrumental e o Prêmio BDMG Instrumental como essenciais para essa mudança. O primeiro, realizado pela Veredas Produções há mais de 15 anos, com idealização da produtora cultural Rose Pidner (in memoriam), integra o Circuito Instituto Unimed-BH. Já o último chegou, neste ano, a sua 23ª e última edição, uma vez que o Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) deve extinguir seu braço cultural a partir de 2025.

“A importância dessas iniciativas é vital. São elas que catapultaram muitos músicos em Minas e no Brasil, são elas que fizeram de Minas um grande celeiro da produção instrumental”, avalia, inteirando que chega aos 70 anos animado com a efervescência dessa cena em Belo Horizonte. “Uma das grandes motivações que tenho para continuar nos palcos é ver essa meninada cada vez mais atuante. Hoje, posso dizer que BH está honrando nossa tradição na música e vivendo um momento muito ativo, que eu sempre acreditei que chegaria”, garante.

Um gênero genuinamente brasileiro

Historicamente, os primeiros registros do choro, que também atende por chorinho, datam o ano de 1845, no Rio de Janeiro. “É um gênero que surgiu da mistura da música europeia com a música africana, principalmente o lundu. No começo, essas músicas eram tocadas no cavaquinho, violão e flauta, e, depois, passaram a agregar instrumentos percussivos e ritmos ligados ao candomblé”, situa Rafael Zavagli.

Rafael Zavagli, cavaquista e artista plástico | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Daniela Meira, por sua vez, acrescenta que o gênero foi criado não por músicos profissionais, mas por pessoas que tinham outras profissões e se encontravam para tocar por diversão, em encontros nos quintais, casas, momentos de diversão. Por isso a característica da confraternização, da reunião em roda, com todo mundo no mesmo nível, sem distanciamento.

“Como BH só foi fundada pouco mais de 50 anos depois dos primeiros registros oficiais do choro, que datam o ano de 1845, só temos registros aqui no início do século XX”, situa ela, que atua na diretoria de música da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e tem interesse pelo ritmo como pesquisadora e entusiasta. 

Um marco importante e seminal na relação entre o choro e a capital mineira, lembra Daniela, foi a passagem, em 1920, de Pixinguinha e seu grupo, “Oito Batutas”, pela cidade.

“O contato dos mineiros com o grupo mais significativo do choro de todos os tempos pode ter sido a semente que estimulou a formação dos primeiros grupos regionais (nome dado ao conjunto musical que toca choro e é composto por instrumentos de sopro, cordas e percussão) de Belo Horizonte”, descreve Marcos Flavio de Aguiar Freitas em sua dissertação de mestrado, que foi apresentada em 2005 ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UMFG).

Em “O choro em Belo Horizonte: aspectos históricos, compositores e obras”, Freitas lembra que, até os anos de 1960, os principais grupos regionais de BH eram contratados para apresentações nas principais estações de rádio da cidade, fosse cobrindo vácuos da programação ou acompanhando apresentações de artistas convidados. Mas, com a mecanização da programação, esses artistas acabavam sendo dispensados. 

“Como no início de sua história, os grupos de choro voltaram-se mais para o ambiente de suas raízes, as rodas de choro”, descreve Freitas, inteirando que, na década de 1970 esse movimento experimenta uma primeira expansão a partir da redescoberta do gênero, evidenciando um reconhecimento do valor de músicos como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo e do mineiro Abel Ferreira.

Opções de rodas de choro fixas de BH em 2024

Domingo
- Chorinho Livre, no Bar da Esquina (rua Sergipe, 146, Centro), das 12h às 15h 
- Orapronois, no Tua Pizza (avenida dos Bandeirantes, 1299, Anchieta), das 11h às 14h
- Velhos Chorões, no Mercado da Boca Savassi (rua Levindo Lopes, 124, Funcionários), das 14h às 17h

Segunda-feira
- Choro de Segunda, na Cantina Azul (rua Paraíba, 1075, Savassi), das 18h às 21h 

Terça-feira 
- Grupo Contraponto, no Redentor, (rua Fernandes Tourinho, 500, Savassi), das 19h às 22h 
- Abre a Roda Mulheres no Choro, no Santo Boteco (rua Major Lopes, 4, São Pedro), das 19h às 21h30 
- Arreda o Passo, no Bar Bocaiuva (rua Paraisópolis, 550, Santa Tereza), das 19h às 22h 
- O Imprevisto, n’O Candiá (avenida Francisco Sá, 430, Prado), das 19h às 22h 

Quarta-feira
- Choro do Jura, no Juramento 202 (rua Juramento, 202, Pompeia), das 19h às 22h 
- Acerta o Passo, no Café com Letras (rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi), das 19h às 22h 
- Encantado das Ruas, no Dona Ivone Botequim (rua Flórida, 31, Sion), das 19h às 22h
- Chorinho de Quarta, no Bar do Chico (rua Conselheiro Rocha, 1605, Santa Tereza), das 19h30 às 23h 
- Choro n’Avenidinha, no Buteco D'Avenidinha (avenida do Contorno, 3379, Santa Efigênia), das 21h30 às 00h30

Quinta-feira
- Choro Nosso, no Muringueiro (rua Juacema, 416, Graça), das 19h às 22h 
- Amigos do Choro, no Bar 222 (rua Francisco Deslandes, 222, Anchieta), das 19h30 às 22h30
- Grupo Velhos Chorões, no Buteko Vila Rica (rua Vila Rica, 637, Padre Eustáquio), das 19h30 às 22h30

Sexta-feira
- Biruta, no Bar Mercado Central Savassi (rua Cláudio Manoel, 778, Funcionários), das 19h30 às 22h30
- Clave do Choro, no Botequim Madureira (rua Madureira, 293, Aparecida), das 19h às 22h

Sábado
- Biruta, no Cantina Azul (rua Paraíba, 1075, Savassi), das 13h às 16h
- Grupo Regional da Serra, no ⁠Restaurante Florestal (avenida Assis Chateaubriand, 176, Floresta), das 14h às 17h.
- Feitiço Roda de Choro, no Bar da Gabi (rua Silvianópolis, 197, Santa Tereza), primeiro sábado do mês, das 16h20 às 19h