ARTES VISUAIS

CCBB-BH inaugura mostra que traz o olhar da negritude sobre a arte

“Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira” entra em cartaz neste sábado com a exposição de 150 obras de artistas negros

Por Laura Maria
Publicado em 25 de maio de 2024 | 07:00
 
 
 

Sentada em um trono, uma mulher preta tem os olhos voltados para frente. Seu olhar não vacila, é penetrante tal qual um raio. Ela veste um manto vermelho escarlate, que cobre seu corpo da cabeça aos pés como uma cachoeira de camadas. Não há mais nada em seu entorno, exceto por um spot de luz acima da tela que dá a dimensão dos dois metros do quadro. Logo no primeiro olhar, ela se revela: trata-se de uma rainha, uma entidade. De fato, é assim que o artista mineiro Gustavo Nazareno enxerga Maria do Arraial, figura emblemática da construção de Belo Horizonte.

Segundo conta a história, ela viveu no povoado de Curral Del Rei, durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, e se opôs firmemente à demolição de sua casa, localizada onde hoje é o Palácio da Liberdade, para o erguimento da nova capital.

Pejorativamente chamada de Maria Papuda por sofrer de bócio, uma doença que faz com que a região do pescoço fique aumentada, ela ganhou uma nova representação nas mãos de Nazareno. “Maria do Arraial” é uma das 150 obras da exposição “Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira”, que chega ao CCBB-BH neste sábado (25), depois de ter sido vista por mais de 100 mil pessoas em São Paulo. “Ela foi injustiçada, por ser uma mulher negra e, especialmente, por ter símbolo de resistência. A Maria do Arraial me lembra muito a forma como as pombas-giras são vistas na sociedade, de maneira pejorativa. Mas a verdade é que ela tem um encantamento muito grande”, afirma o mineiro de Três Pontas, que dedica seu trabalho à representação dos orixás.

Para pintar “Maria do Arraial”, Nazareno usou como base uma única fotografia da Maria do Arraial, em que ela aparece sorridente em frente a uma casa de pau a pique - a imagem, batizada de Rancho Velho de Papuda (1894), pertence ao acervo do Museu Abílio Barreto. “Fiz estudos da imagem fazendo cálculos matemáticos da sua única foto existente. Calculei a distância da testa até o olho, e, com isso, consegui conceber um rosto que fosse similar ao dela”, explica. Depois disso, ele mesmo confeccionou o manto vermelho que a cobre. “Eu o coloquei em um manequim para ter uma ideia melhor de como pintá-lo”, revela.

Ao lado de “Maria do Arraial”, em dimensões menores, estão expostos outros dois quadros de Nazareno: em um, ela está em cima de uma rocha, e, no outro, há uma bandeira vermelha. “São duas obras que dão contextualizações à primeira. O vermelho é a cor de Iansã, que representa a justiça”, aponta o artista.

A obra de Nazareno, encomendada especialmente para a exposição em BH, dá o tom da mostra, que, com trabalhos de 61 artistas, procura mostrar a história sob o ponto de vista do negro. “A academia, as instituições e as galerias de arte são calcadas especialmente por artistas brancos, que são sempre referenciados como produtores da arte. Os cinco eixos temáticos da exposição, por sua vez, trazem essa discussão sob o ponto de vista dos artistas negros, que sempre estiveram presentes ao longo da história do Brasil, mas poucas vezes retratados. Dessa forma, a exposição propõe outras maneiras de contar a história”, conta o curador da exposição, Deri Andrade.

Ele é autor do Projeto Afro, programa de mapeamento e difusão de artistas negros da cultura afro-brasileira. Desde 2016, já catalogou mais de 300 artistas, que estão reunidos na plataforma.

A exposição “Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira”, a propósito, é fruto deste trabalho. “O mapeamento surgiu de uma inquietação de não encontrar no espaço on-line algo que organizasse e mostrasse a produção de artistas negros, os locais em que estavam sendo feitas e em quais épocas. Apesar de termos uma série de referências, faltava um espaço onde tudo isso poderia estar catalogado”, explica o curador.

Um leque por todo o Brasil

Para montar a exposição “Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira”, o curador Deri Andrade selecionou  obras de artistas de todas as regiões do Brasil. “Eu quis que o Brasil estivesse representado do Norte ao Sul”, esclarece. Desses, oito são mineiros, autores de 39 obras. Além de Gustavo Nazareno, a exposição apresenta outros mineiros, como Massuelen Cristina, Marcel Diogo, Marcus Deusdedit, Priscila Rezende, William Lima (Will) e a homenageada, Maria Auxiliadora. Para BH, Andrade ainda trouxe dois trabalhos originais de Rubem Valentim, pertencentes ao acervo do Museu Afro Brasil, e três trabalhos do artista carioca Arthur Timótheo da Costa, advindos do Museu Afro Brasil e da Pinacoteca de São Paulo.

“O Arthur abre a exposição e trabalha muito com a pintura, com o autorretrato e discute a importância do ateliê do artista. No segundo momento, o Rubem Valentim apresenta obras que ficam no limiar entre o contemporâneo e o moderno e que falam muito sobre processos artísticos diversos. No terceiro eixo, o público encontra uma produção mais política, marcadamente engajada, com aspectos do cotidiano, como as obras de Maria Auxiliadora. No quarto momento, há obras do Mestre Didi, um sacerdote e educador, que é referenciado pelo artesanato. Também é lá que está a obra ‘Maria do Arraial’, do Gustavo Nazareno. Por último, há Lita Cerqueira, única artista homenageada ainda viva, que tem o trabalho marcado pela fotografia de festas de matriz africana e de coisas do dia a dia”, fala o curador, detalhando os cinco eixos da exposição: Tornar-se, Linguagens, Cosmovisão, Orum e Cotidianos.

No pátio do CCBB, estão dispostas ainda a “Bandeira Mulamba” (2019), do artista Mulambö, no qual a bandeira do Brasil ganha contornos e cores afro, e duas grandes obras da artista de Sabará, Massuelen Cristina. “Desenvolvi um trabalho que pensasse em uma materialidade que conversasse com a arquitetura do espaço. Então, além de ser um trabalho artístico, ele também envolve expografia. ‘Às Margens do Velha’ é uma das primeiras obras que desenvolvi trabalhando com fotografias feitas a partir do acervo de família. Essas imagens foram trabalhadas digitalmente para serem expandidas e também são uma representação que vai além de mostrar pessoas, mas também significam a instituição da matrilinearidade, focada nas mulheres”, explica Massuelen”, fala Massuelen.

É dela também as faixas vermelhas dispostas do teto em direção ao pátio do CCBB com grafismos próprios da umbanda. “Eu, enquanto mulher da umbanda, criada em um terreiro, conversei sobre quais processos seriam encruzilhadas. Por isso, trouxe as bandeiras, que se chamam ‘Saravá, todos exus’. Com isso, pedimos proteção para esse espaço, para que os exus abram os caminhos”, indica.

Serviço

O que. Exposição "Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira"
Quando. De 25 de maio a 5 de agosto, de quarta a segunda, das 10h às 22h

Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (praça da Liberdade, 450, Funcionários)

Quando. Gratuita, mediante retirada de ingresso no site do CCBB-BH ou na bilheteria

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!