O equívoco acontece com frequência, e nem é tão injustificado assim. Afinal de contas, apesar do sotaque carioca de seus integrantes, “muita gente acha” que o Boca Livre é “um grupo mineiro”, admite o capixaba Zé Renato, que adotou o Rio de Janeiro em sua mocidade, e, nos últimos tempos, radicou-se em São Paulo.
Da sonoridade ao repertório, desde o primeiro álbum, de 1979, a música do quarteto vocal conversava com a obra de Toninho Horta, Nelson Angelo, Fernando Brant (1946-2015), Cacaso (1944-1987) e Milton Nascimento. Logo, não deixa de ser “uma feliz coincidência” que a volta aos palcos para a estreia da turnê “Rasgamundo”, álbum recheado de inéditas que acaba de ser lançado, ocorra em Belo Horizonte, nesta sexta (31).
“Essa mineiridade está imersa em nosso DNA, é uma influência muito nítida”, afirma Zé Renato, que cita os sucessos “Toada” e “Quem Tem a Viola” como exemplos. O novo trabalho é um diálogo com a história do grupo em vários sentidos. Em 2021, após divergências políticas, Zé Renato, David Tygel e Lourenço Baeta anunciaram que estavam deixando o Boca Livre porque Maurício Maestro se recusava a tomar a vacina contra a Covid-19 e propagava teses anticiência nas redes sociais. Pouco depois, ao serem premiados com o Grammy de melhor álbum de pop latino por “Pasieros”, gravado com o panamenho Rubén Blades, a reconciliação começou a se desenhar.
“Foi o Maurício que propôs que a gente se encontrasse e houve o entendimento de que, por mais que as pessoas pensem diferente, nosso ciclo ainda não tinha chegado a um ponto final. A música fez o seu papel de mostrar que havia um elo muito forte para ser rompido definitivamente”, resume Zé Renato, que considera o cenário atual, com um ano e meio de governo Lula, “menos tensionado”.
“O mundo gira dessa forma, é importante que haja diálogo e respeito pelas ideias contrárias”. O reencontro levou a trupe a compor junto novamente. Todos assinam pelo menos uma das dez faixas de “Rasgamundo”, título pinçado da parceria de Zé Renato e Lourenço Baeta que abre-alas para a retomada.
Parcerias com Nando Reis, Zeca Baleiro e Erasmo Carlos
Publicado pelo crítico musical José Ramos Tinhorão (1928-2021), em 2007, o livro “O Rasga: Uma Dança Negro-Portuguesa” serviu de inspiração para a letra composta por Baeta – que assina, sozinho, “Dois Oceanos” –, ao abordar a manifestação cultural que também originou o reco-reco, a partir de instrumento raspado em uma madeira.
Ele se debruçava sobre a música de Cabo-Verde quando foi agraciado com a melodia de Zé Renato, que, para completar, conhecera, em Portugal, a cantora cabo-verdiana Nancy Vieira, que participa da canção. Apesar da “reserva em definir” o sentido de “Rasgamundo”, Zé Renato admite a conotação “libertária, de viajar e pegar a estrada, rasgando o mundo”. “Gosto de deixar em aberto, para que as pessoas façam as próprias associações”, diz.
Com “O Canto em Nós”, Zé Renato inaugura, oficialmente, sua parceria com Zeca Baleiro. A dupla guarda na gaveta “A Estrela Vai Estar Lá”. Ambas foram geradas na pandemia, de maneira remota. “Curiosamente, a gente ainda não se encontrou pessoalmente”, confessa Zé Renato.
A mensagem que surge é de comunhão, com ares de hino de louvor, como sinalizou Baleiro. “É uma poesia linda sobre o canto que existe em cada um de nós, e não apenas nos músicos”, sublinha Zé Renato, que chegou a entoá-la em um espetáculo com o trio Amaranto. “Ouve a minha voz/ E canta esta canção de amigo/ Quem sabe assim consigo/ Que todos tenham voz”, conclamam os versos.
O primeiro encontro musical com Nando Reis também foi mediado pela internet e pelo produtor Marcus Preto. De madrugada, Zé Renato enviou a melodia, e, pela manhã, Nando já digitava a resposta à missiva. A novidade rapidamente veio à luz, tornando-se single do vindouro álbum. No início de tudo, Zé Renato tentava tirar, ao violão, uma música de Edu Lobo, quando se fixou no acorde que serviu de ponto de partida para “Rio Grande”.
“Sou muito movido a esses estímulos, as coisas se misturam e se costuram meio desordenadamente, impulsionando umas às outras”, conta Zé Renato, que, ao receber uma letra deixada por Erasmo Carlos (1941-2022), se imbuiu do espírito do Tremendão. “Fiquei o tempo todo imaginando como ele faria aquela música”. Assim nasceu a romântica “Sentimentos Nus”. Já Guilherme Arantes presenteou o quarteto com “Toda Felicidade”. A instrumental “Prayer”, de Maurício Maestro, encerra o álbum. Como se nada mais precisasse ser dito, ecoando as preces.
Regravações para clássicos contemporâneos e reflexão ambiental
Seguindo a tradição aberta pelo Boca Livre na década de 1970 de conceder versões marcantes para clássicos da MPB, as regravações voltam a dar o ar da graça no lançamento. Com “O Vento”, de Rodrigo Amarante, e “Mesmo se Você Não Vê”, o grupo empresta suas vozes a sucessos da banda Los Hermanos e de Tim Bernardes, respectivamente. Nos dois casos, a busca é por uma sintonia fina entre a característica do original e a assinatura própria, que, “mesmo que possa causar alguma estranheza, é sempre o Boca Livre”, pontua Zé Renato, assinalando a imediata identificação.
Ele se recordou do documentário “Echo in the Canyon”, de Andrew Slater, filho de Bob Dylan, que já havia assistido inúmeras vezes, ao mergulhar na canção de Tim Bernardes. Zé Renato enumera vários conjuntos contemplados no filme, como The Byrds, Beach Boys e The Mamas & the Papas. “A música tem um sabor meio setentista, que, de alguma maneira, se conectava com essa sonoridade que estava me rondando”. A mais contemporânea canção do repertório, no entanto, é “Povo do Sol”, de David Tygel e Márcio Borges, apelo em defesa da natureza e dos povos originários, que recobrou sua trágica contundência em razão das enchentes no Rio Grande do Sul.
“É uma preocupação que existe há muito tempo, o Tom Jobim (1927-1994) já falava sobre isso. Vivemos em um país privilegiado, e, ao mesmo tempo, maltratado pelo desrespeito e pelo descaso. A conta está vindo agora de maneira muito cruel, e a tendência é que isso que aconteceu no Sul se espalhe por outras cidades do Brasil. É impressionante como as pessoas não se sensibilizam, há uma comoção no momento, mas a maioria age para fragilizar as regras de proteção ambiental, e a minoria não tem força para impor as mudanças que, mesmo que sejam feitas agora, já virão tarde. Há uma desumanidade explícita que coloca outros interesses acima da vida”, desabafa Zé Renato, que também cita os ataques de Israel aos campos de refugiados em Gaza.
O músico continua de luto pela perda do amigo e saxofonista Zé Nogueira (1955-2024), histórico produtor do Boca Livre, que morreu logo após a finalização de “Rasgamundo”, em abril, vítima de problemas cardíacos. “É muito difícil conviver com essa ausência, ele era um irmão pra mim. Ainda não consegui processar, não entendo direito, às vezes fico revoltado de não poder telefonar para ele, como a gente fazia sempre. O Zé tinha uma relação com a música que não era só de instrumentista, ele vivia isso de forma ampla, quem conviveu com ele percebia. É uma tristeza ele não estar aqui para celebrar esse retorno com a gente, mas vamos tocar o barco em homenagem a ele”, finaliza Zé Renato.
Serviço.
O quê. Estreia da turnê “Rasgamundo”, do Boca Livre
Quando. Nesta sexta (31), às 21h
Onde. Grande Teatro Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046)
Quanto. De R$100 (meia) a R$250 (inteira), pelo site www.sympla.com.br ou na bilheteria do teatro