Logo nos primeiros segundos, Ricardo Aleixo sentiu pânico. O poeta e performer belo-horizontino levava a sua poesia em incursões por grotões do país, quando chegou ao sertão de Pernambuco e se viu diante de uma plateia diferente da que estava acostumado.

“Como vou dialogar com essas mulheres, todas na faixa dos 60 anos e estudantes do EJA [Educação de Jovens e Adultos]?”, recorda-se daquele momento. Rapidamente, porém, ele notou que a sua percepção inicial não passara de preconceito. Dez minutos após ter começado a performance, avistou lágrimas nos olhos daquelas que o assistiam. 


Ali, não teve mais dúvidas. “Se eu fiz alguma coisa de muito importante na vida foi ter percebido que é uma balela dizer que ninguém gosta de poesia, que ninguém gosta de arte, porque o que eu tenho vivido de mais feliz hoje é o encontro com pessoas como essas mulheres”, elabora.

O caso é um exemplo de algo magistral a que o artista tem dedicado seus 40 anos de carreira: levar a poesia para fora do livro, não somente por meio da palavra, mas também pela música, pela performance, pelo vídeo e pelas artes plásticas.


O artista explora a palavra em seus mais variados aspectos, do conteúdo à sonoridade. Como diz no poema “Palavrear”, ele “joga a palavra no vento e fica vendo ela voar.” Tamanha criatividade já foi reconhecida em diferentes ocasiões – foi finalista de duas das premiações mais importantes em língua portuguesa, o Oceanos (2018 e 2023) e o Jabuti (2011 e 2022), conquistou os prêmios Mestras e Mestres das Artes e Alceu Amoroso Lima e recebeu da UFMG o título de Notório Saber, equivalente ao grau de doutor. Agora, ele se tornará um imortal.

Na última semana, Aleixo foi eleito o novo integrante da Academia Mineira de Letras, onde ocupará a 31ª cadeira a partir do dia 21 de junho. Com a maioria de votos (foram 31 indicações em um total de 33 votantes), Aleixo assumirá o posto do escritor, professor, pesquisador e crítico literário Rui Mourão, que morreu aos 95 anos em 18 de abril deste ano. Ao comentar sobre a premiação, o poeta lança um olhar sobre o início de sua trajetória, que começou na casa no bairro Campo Alegre, na região Norte da capital, onde vive desde os seus 9 anos.

 

“Gosto sempre de lembrar que esta é a casa que permitiu que minha irmã Fátima e eu estudássemos. No meu caso particular, me permitiu decidir, aos 18 anos, sair da escola para ter mais tempo de estudar”, relembra.

Pode até parecer incongruente, deixar uma instituição de ensino para se dedicar aos estudos, mas é que Aleixo sempre considerou o ambiente escolar uma espécie de prisão. Os pais não se opuseram, porque o então jovem poeta elaborou um programa de estudos ao qual se dedicaria diariamente. “Sempre fui um garoto leitor. Meu pai lia para nós e conosco, minha mãe também, e minha irmã estudou letras na UFMG. Minha família era riquíssima, só não tinha dinheiro”, brinca.

A verdade é que Aleixo era um “garoto que só queria fazer arte”, e a palavra “sucesso” nunca havia passado pela sua cabeça. Acontece que sua dedicação aos estudos começou a dar frutos. “Fui chamado para colaborar com jornais de Belo Horizonte e acabei recebendo por isso. Minha família logo viu que eu fiz a melhor escolha. Mas não conseguia pensar em coisas como: ‘vou lançar um livro, que será publicado em uma grande editora do Rio e São Paulo e vou concorrer a vários prêmios’. Eu não sabia de nada disso, só pensava no quanto era bom seguir o meu coração, e isso continua. Tenho um respeito muito grande por esse garoto que fui”, pontua.

Processo de fruição da criatividade 

A liberdade em poder explorar a arte em suas mais diversas manifestações é parte fundamental para o processo de criativo de Ricardo Aleixo. “Sempre cantei em casa. Recebi iniciação musical, desenhava, escrevia, imitava vozes e trejeitos. O que acontece é que, a partir dos 18 anos, eu juntei todas essas competências que, para mim, eram um motivo só de prazer”, afirma. Com 20 livros publicados, ele já fez performances em quase todos os Estados do país e se apresentou em países como Angola, Argentina, Alemanha, Portugal, Estados Unidos, Espanha, México, França e Suíça.

Seu trabalho é fortemente influenciado pela poesia concreta, mas a melhor maneira de descrever o poeta é como “inclassificável”, tal como escreveu o ensaísta e crítico Sebastião Uchôa Leite, no prefácio do livro “Trívio” (2001). “É curioso porque o meu saudoso amigo, o Sebastião Uchôa Leite, ao dizer que sou inclassificável, ele está, de certa forma, me classificando”, comenta, entre risos. 

 


“Ironias à parte, eu gosto de me sentir livre. As classificações feitas pelo sistema literário e artístico apequenam o escritor ou poeta, porque tendem aprisionar a pessoa que cria em algum esquema mental já previamente montado, ao invés de se dedicar a entender quais são esses processos criativos. Certa faixa da crítica se satisfaz em pegar o passado e a tradição para fazer comparações”, pensa.

Aleixo se refere à crítica acadêmica, porque “lamentavelmente a crítica de jornal não existe mais”, destacando que há nela muitos vícios. “É preciso ter a sensatez de entender que processos criativos que se pautam pela radicalidade e pela invenção demandam um tempo maior de absorção. Não dá para um trabalho ser lançado agora, nas artes visuais, na dança, no teatro ou na música, e alguém já ter uma compreensão mais profunda possível de tudo que está envolvido nesse processo criativo. É preciso que se passe muito tempo, e tudo agora é muito rápido”, conjectura.

Poesia hoje vive uma ‘acomodação criativa’

O multiartista Ricardo Aleixo conta que tem acompanhado a produção atual de poesia (“até por força do meu trabalho, né?”), mas que percebe nela uma certa “acomodação criativa”. “O que eu sinto é que muitos fulanos e muitas fulanas estão escrevendo boa poesia hoje. O que eu não sinto é um impulso para invenção, para experimentação que caracterizou as gerações anteriores, eu sinto como que uma acomodação criativa”, diagnostica. Para ele, “há pouco interesse por dialogar com outras poéticas que não sejam aquelas que predominam historicamente, em termos de influência, no ambiente da poesia brasileira.” “Eu acho tímida as abordagens”, resume.


Na avaliação de Aleixo, essa nova forma de se fazer poesia nada mais é do que um reflexo do modo como a sociedade brasileira está organizada hoje. “Onde estão os projetos coletivos? Onde estão os projetos de transformação da sociedade? É um momento de acomodação sociocultural e política. Eu jamais colocaria o dedo na cara dos poetas e das poetas dizendo: ‘vocês são estão acomodados.’ Não. Nós, sociedade brasileira, é que estamos em um momento de grande acomodação. Nós conseguimos derrotar a extrema-direita, mas onde estão os projetos ligados àquilo que a gente ainda pode chamar de esquerda?”, questiona. 


A política, a propósito, está intrinsecamente atrelada à carreira de Aleixo. No livro “Trívio”, por exemplo, ele aborda suas inquietudes quanto ao racismo reiterado vivido pela população negra. Dessa forma, ele diz ter, por vezes, uma visão negativa da vida para não “cair nas armadilhas de um racismo distraído.”

“Eu simplesmente não consigo entender o silêncio estrondoso que se faz no Brasil com relação ao genocídio da juventude negra, mesmo pessoas negras de destaque e minimamente informadas não se manifestam com a força que deveríamos entregar na refutação desse crime lesa-humanidade. Isso me indigna”, descreve.


“Quando pensamos numa Marielle, é imprescindível entender que a força das manifestações de quando ela foi barbaramente assassinada, arrefeceu. Agora mesmo, quando pipocam as notícias sobre os assassinos dela, nós não estamos nas ruas exigindo punição exemplar. Penso que há uma passividade muito grande entre o movimento de perceber e denunciar o racismo e o que deveria ser a ocupação das ruas, dos prédios públicos e do STF, para cobrar transformações à altura da violência contra a população negra. É daí que vem o meu pessimismo”, acentua.

 Ainda assim, o artista reconhece que há avanço. “É preciso entender que muito foi alterado do tempo que eu era menino. Mas também temos que ficar atentos, porque o fato de haver políticas públicas de valorização das vidas negras e de tentativa de eliminação do racismo, não significa toda a ação necessária”, sentencia.