Federico Fellini é um dos raros cineastas a merecer um verbete nos dicionários, como sinônimo de algo delirante, imaginativo. Apesar de chamar a atenção dos lexicógrafos a ponto de virar adjetivo (felliniano), o reconhecimento do cineasta italiano, responsável por obras-primas como "As Noites de Cabíria", "A Doce Vida", "Oito e Meio" e "Amarcord" diminui a cada ano que passa, desde a sua morte em 1993.
"É falta de interesse por aquilo que é mais antigo. Essa nova geração tende a achar que tudo é muito antigo, até mesmo um filme da década de 1980 ou dos anos 2000. Com isso, deixam de conhecer a história", registra Ana Lúcia Andrade, professora de cinema da Escola de Belas Artes da UFMG que irá ministrar um curso de dois dias sobre Fellini, durante retrospectiva que ganha as telas do Cine Humberto Mauro a partir desta quarta-feira (5).
Serão exibidos, de forma gratuita, filmes que tiveram a assinatura do mestre italiano (20 longas-metragens, três curtas de antologias e um média para a televisão), além da realização de palestras e de uma apresentação cine-teatral inédita estrelada por Rejane Faria, que acontecerá no Grande Teatro. Para Ana Lúcia, a mostra é importante para apresentar aos neófitos um diretor que sempre teve carinho por personagens simplórios e humildes.
"Em sua segunda fase especialmente, depois de 'A Doce Vida', Federico Fellini apresentou um cinema mais onírico, mais voltado para uma auto-análise. Essa abordagem na primeira pessoa, quando se é muito sincero e autêntico, possibilita a você atingir o outro. Fellini acreditava nisso: o verdadeiro artista é aquele que oferece o máximo de si para o outro", analisa a professora da UFMG.
Ela sublinha que "aquilo (as emoções transmitidas em um filme) deixa de ser só seu e passa a ser também do outro, fazendo as pessoas evocarem as suas próprias memórias, as suas próprias relações com o mundo, a partir dessa experiência que o cinema dele proporciona". Quanto mais autoral, diz Ana Lúcia, mais as pessoas começam a se sentir como os personagens, compartilhando da confusão e dos devaneios.
"A gente já entra no caos que é a própria mente do autor, na própria visão de mundo, de arte e de cinema de Fellini, colocando-se em xeque. É quando a gente é mais exigido", assinala. No curso, Ana Lúcia apresentará esse Fellini autoral na segunda aula. Na primeira, ela irá localizar o cineasta na filmografia mundial, ao falar do cinema italiano da primeira metade do século passado, destacando-se o neorrealismo.
"É nesse momento do neorrealismo que ele surge, sendo influenciado por ela. Mas depois Fellini vai romper com o neorrealismo, se aproximando mais da Nouvelle Vague. São dois momentos muito diferentes em termos de linguagem. Na fase inicial, você só 'assiste', ainda que com toda a poesia felliniana que ele vai carregar durante toda a obra", compara Ana Lúcia.
Os personagens do realizador são como heróis do cotidiano, mas com uma pincelada bem felliniana. "Ele não faz o homem do povo a la neorrealismo italiano. Sempre tinha um tom meio circense, caricatural", comenta. Fellini foi cartunista de jornal, no início da carreira, além de escrever esquetes cômicos para programas de rádio. "Por isso criava os personagens dos filmes da cabeça dele, desenhava e depois é que ia atrás dos atores para fazer".
A retrospectiva apresentará filmes restaurados vindos de acervos na Itália, França e Estados Unidos e tem como destaques os documentários “NBC Experiment in Television – Episódio 6 ‘Fellini: A Director’s Notebook’” (1969), dirigido por Fellini para a televisão estadunidense, e o ainda inédito "Fellini, Confidências Revisitadas” (2023), que narra a vida e a obra do cineasta através de suas próprias palavras.
SERVIÇO
O que. Retrospectiva Fellini
Quando. De hoje a 3 de julho
Onde. Cine Humberto do Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1537 - centro)
Quanto. entrada franca.