Corria o ano de 2010 quando a promessa de um Fundo Nacional da Música parecia realizável no horizonte. A ideia era unir os agentes da Rede Música Brasil, associação de entidades de música criada durante a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura – e retomada em 2024 com Maria Marighella, atual presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) –, que incluía representantes da sociedade civil e das grandes gravadoras. 

“Naquele momento a gente sentou na mesa porque vinha de um trabalho de três anos de consolidação dessa relação, em que chegou-se à conclusão que, para determinados setores, haveria apoios específicos que não passariam nem por editais, seriam convênios com universidades, projetos integrados, repasses do governo federal para municípios ou para as próprias universidades estaduais e federais”, recorda o músico e historiador Cacá Machado, que, à época, atuava como gestor da Funarte.

No entanto, “uma série de descontinuidades” emperraram a iniciativa, com trocas no Ministério da Cultura que tiveram Ana de Hollanda e Marta Suplicy no comando, culminando na deposição pelo Congresso da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. “Foi quase uma década de descontinuidades e depois entramos em um governo ultraconservador em que a cultura não é que deixa de ser valorizada, ela sequer era reconhecida”, aponta Cacá. Logo, a política de editais a nível federal iniciada em 2003, no primeiro mandato do presidente Lula, parecia deparar-se com um obstáculo intransponível ao seu progresso.

Utopia

“Com todas as dificuldades, os editais começavam a ganhar refinamento e precisão para os públicos-alvos, e, portanto, sendo mais democráticos, compreendendo que dentro de um setor musical existem várias vertentes, como MPB, samba tradicional, axé, etc. Foi um trabalho quase utópico desenvolvido com parceiros importantes como o (cantor e compositor radicado em Minas) Makely Ka. No final de 2010, a gente tinha uma visão muito fina de como funcionava o mercado musical fora das grandes gravadoras, pensando do ponto de vista de como o Estado poderia diagnosticar um problema para tentar corrigir essa distorção”, reflete Cacá acerca de tudo o que poderia ter sido mas não foi. 

Diretor de Música da Funarte nesse período, Marcos Lacerda avalia como “um direito fundamental” a implementação de “políticas robustas, consistentes e continuadas de editais para o fomento à produção, circulação e difusão da música feita no Brasil”. “Os artistas são trabalhadores da cultura e precisam ter boas condições materiais para viabilizar as suas respectivas carreiras e vocações. Considero muito importante o papel do Estado como fomentador direto da criação cultural do país, excluída a interferência no conteúdo ou na valoração ideológica. Os artistas devem ser livres para criar o que consideram ser mais interessante para as suas respectivas vocações. Mas devem ter, especialmente os de classe popular, condições materiais para isso”, defende. 

Lacerda enfrenta esse nó da questão levando em conta que “existem diferentes tipos de editais e que estes podem estar submetidos às esferas de governança e a diferenças de ordem ideológica”. “Há editais que valorizam, em primeiro lugar, a condição social dos proponentes, procurando fomentar a produção cultural entre artistas das classes populares. Por outro lado, há editais que colocam em primeiro plano outros marcadores sociais, como os de gênero, raça e etnia, procurando com isso estimular uma maior ‘diversidade’ na produção cultural do país. E ainda existem editais que colocam em primeiro plano a qualidade estético-formal, levando em consideração que a forma artística tem a sua autonomia”, destrincha. 

Recalque

Na opinião do músico Rogério Skylab, “o mundo dos editais é um fenômeno da Nova República”. “Tentar entender o universo dos editais é mergulhar no sistema político dos anos 1990 até os dias de hoje. O que coincide também com o que eu chamo de terceiro ciclo da moderna música popular brasileira. Se pensarmos nas grandes multinacionais do disco, dos anos 1950 até meados dos anos 1990, podemos pensar sim que os editais inauguram uma nova era, com avanços e impasses”, analisa. 

Para ele, “os parâmetros dos editais são a expressão de novos tempos e passam a contemplar o que permanecia recalcado na ditadura militar”. Skylab dá como exemplo “a cultura popular do Brasil profundo e até mesmo expressões culturais que ficavam restritas a guetos numa grande cidade, como o rap, o charme, o pagode e a axé music”. “O surgimento dos editais está em sintonia com a explosão de todos esses movimentos represados dos anos 1950 aos 1980. Eles atuaram no sentido de implementarem uma nova política cultural, mais aberta, mais democrática”, avaliza. 

Doutora em Letras, pesquisadora musical, discotecária e idealizadora do projeto de curadoria Cultura Sonora, Cláudia Parra referenda essa posição sem deixar de notar suas problemáticas. “O surgimento dos editais instituiu uma outra forma de acesso ao mercado musical e oportunidades de inovação na produção para a música popular brasileira, como, por exemplo, ao contemplar diversos estados brasileiros e não priorizar apenas a produção do eixo Rio-São Paulo. No entanto, há limitações no processo dependendo do que é proposto no edital, como determinação de alinhamento temático, muitas exigências burocráticas, dentre outras”.

Forças

Cláudia exalta a Lei Paulo Gustavo como “marco histórico significativo na promoção da equidade no acesso aos recursos de fomento no Brasil. “A LPG incorporou critérios de cotas e de acessibilidade mais abrangentes, o que me parece ser um avanço na busca de uma produção musical mais inclusiva e mais representativa. É um modelo a ser seguido e aperfeiçoado. O caminho da equidade é longo, mas já é um começo”, comemora. 

Cacá Machado se permite abrir divergência. Ele sustenta que editais como Paulo Gustavo e Aldir Blanc, nascidos como emergenciais no contexto da pandemia de Covid-19, “por serem muito genéricos e transversais, a partir de uma série de inclusões importantes e pertinentes, correm o risco de, com a melhor das intenções, que é justamente trazer a diversidade, acabarem homogeneizando a produção, ao perderem de vista as especificidades de cada setor”. 

Rogério Skylab discorda. “A política dos editais nunca vai homogeneizar a cultura porque o Estado vai estar sempre aquém das forças sociais, que estão sempre em movimento. A organização do Estado estará sempre em defasagem em relação a essas forças sociais, que são, por natureza, impessoais e selvagens”, arremata. 

Democratização não eliminou atritos  

Enquanto o tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso era incorporado ao catálogo da gravadora Philips, multinacional interessada na música que despontava nos festivais de fins da década de 1960 e começo de 1970, Tom Zé era relegado a um duradouro ostracismo do qual só seria resgatado anos mais tarde por um acaso do destino que uniu a curiosidade do músico norte-americano David Byrne à estranheza musical proposta pelo filho pródigo de Irará, no sertão baiano. “As grandes gravadoras sempre tiveram um funil muito apertado, e passar nesse filtro, obviamente, não tinha a ver com mérito ou talento, mas era consequência de um jogo de forças e interesses”, contextualiza Cacá Machado, músico, produtor musical e historiador paulistano. 

Com a ampliação do mercado da música e o surgimento dos dispositivos digitais, emergem os editais advindos de políticas públicas, sobretudo com a criação do Ministério da Cultura no mandato do então presidente José Sarney, em 1985, após o fim da ditadura militar. A pasta seria extinta nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Inicialmente tímidos, os editais começam a ganhar vulto nas administrações petistas de Lula e Dilma. Cacá pondera, todavia, que um modelo não substituiu o outro. “As gravadoras seguiram com a mesma lógica, selecionando poucos artistas, mesmo com todas as questões relativas às mudanças tecnológicas”, salienta. 

Nesse cenário, ele enaltece a política dos editais como “uma ferramenta, supostamente a mais democrática, para você ampliar o acesso e tentar corrigir, do ponto de vista do Estado, aquilo que era considerado uma distorção do mundo privado, onde a gravadora escolhe quem ela quer bancar como artista e ponto final”. “Desde 2008, quando eu era diretor da Funarte, eu já dizia que o edital é uma ferramenta de exclusão do artista, não de inclusão. Porque ele acaba criando uma espécie de leitura muito geral em que você não consegue entender as especificidades de estilos e gêneros, o que minimizaria essa briga pelos recursos. É necessário tempo para os editais ganharem um recorte mais específico”, afiança Cacá, para quem, não obstante, “artistas completamente alijados do mercado, como os mestres de culturas matriciais, conseguiram viabilizar seus trabalhos graças aos editais, que democratizaram muito o acesso à produção musical”. 

Avanços e impasses

O músico carioca Thiago Amud, que escreveu arranjos para o álbum “Meu Coco” (2021), de Caetano Veloso, e contou em seu recente e autoral “Enseada Perdida” (2024) com as participações do baiano e de Chico Buarque, concorda que “os editais, por adotarem ações afirmativas reparadoras de injustiças históricas, podem fomentar a participação de setores mais amplos da sociedade na vida cultural, ao passo que as gravadoras, ao longo das décadas, foram passando a ter por norte sobretudo, ou apenas, o lucro”. “Mas, ao mesmo tempo, sabemos que engajamento em pautas identitárias não é, por si só, garantidor de arte relevante”. 

Amud pondera que, “quando se torna imperativo simular cacoetes de inclusão, pode-se chegar a um tipo diferente de cerceamento da liberdade criativa, para atender a demandas alheias à arte”. “Vale dizer que é impressionante que a máquina do capitalismo seja tão poderosa que até mesmo pleitos legítimos em busca de justiça social possam virar moeda de troca. Que fique claro, no entanto, que acho injustificável a grita da direita contra as pautas identitárias e aquilo que ela chama, toscamente, de ‘misturar arte e política’”, posiciona-se. 

O músico Rogério Skylab segue o coro. Para ele, houve “avanços inegáveis como os pontos de cultura, por exemplo”. “Quem viveu o estrangulamento cultural dos anos 1970 e 1980, entende que os editais anunciam uma nova era. Só que esse novo processo, por mais democrático que seja, tem distorções naturais. A implementação de uma nova política cultural vai sempre entrar em choque com outros interesses. E a polarização política é o maior exemplo desse conflito de interesses”, ilustra, ressaltando que “o Estado vai sempre cumprir o seu papel de correção de rotas”. “No caso de um estado democrático, vai contemplar minorias políticas. Mas poderá entrar em conflito com o espírito libertário da arte. Alguns trabalhos poderão não ser contemplados por editais e caberá a esses artistas buscarem novos caminhos”, afirma Skylab. 

Alternativas

O compositor e bandolinista mineiro Marcos Frederico foi um dos que procurou alternativas para não ficar à mercê do que ele chama de “ditadura dos editais”. Embora tenha sido contemplado em 2011 pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, que possibilitou a gravação do álbum autoral “Onze” com “a estrutura ideal, contratando músicos, estúdios, etc”, Frederico admite que não acompanha mais “a evolução dos editais”, após tentativas frustradas de emplacar outros projetos. “Tento viver um mundo à parte porque sei que se depender de ser aprovado por júris de editais corro um sério risco de não produzir minhas músicas”, diz. 

Ele conta que investiu em um estúdio pequeno para viabilizar seu som, e que tem trabalhado através de permutas e edições com outros estúdios. Prestes a lançar um novo álbum instrumental, batizado “Despalavra”, Frederico declara que essa foi “uma saída encontrada”. “A notícia que tenho é que os editais se afunilam cada vez mais e ficam na mão de poucas pessoas que já conhecem ‘a receita do bolo’. Também sei que a utilização de Inteligência Artificial, como em todas as áreas, chegou ao preenchimento dos formulários de editais. E a prática muitas vezes é facilmente percebida. Cabe a quem está avaliando o processo ter atenção e discernimento”, situa. 

A pesquisadora musical Cláudia Parra contesta que os editais tenham se tornado hegemônicos na produção fonográfica do país. “Eles oportunizam uma maior diversidade cultural e musical, mas não existem em proporção suficiente para se concluir que dominam o cenário”. Apesar disso, Cláudia considera ser possível afirmar que os editais “acabam contemplando artistas mais informados sobre o assunto, e, consequentemente, mais preparados para todo o processo envolvido, como pessoas que já estão na cena musical há um tempo e por isso sabem os caminhos de acesso a esses editais, artistas que possuem meios de contratar profissionais para realizar a parte burocrática do processo, entre outros contextos que facilitam o acesso ao conhecimento acerca dessa alternativa de fomento”, pontua. 

Modelos

Cláudia acredita que tanto o modelo das gravadoras quanto o dos editais “impactam e enviesam a produção musical”. “Por outro lado, enquanto as grandes gravadoras, por muito tempo, influenciaram de forma mais direta e explícita o curso da música e de seu mercado, privilegiando determinados artistas e produções musicais, por conta de seus recursos e capacidade financeira, os editais funcionaram, mesmo com suas limitações, como ferramenta para desmantelar o monopólio das gravadoras”. 

Ex-diretor de Música da Funarte, Marcos Lacerda sustenta que uma das questões mais candentes enfrentada por aqueles que acessam editais é “a falta de um vínculo contratual de trabalho, que poderia dar ao artista mais segurança material para conduzir a sua vida e viabilizar a dedicação exclusiva à criação artística”. “A política de editais pode contribuir para uma maior independência, mas, ao mesmo tempo, ela tem uma característica descontínua, dependendo muitas vezes das mudanças na política institucional. Uma mudança no ministro da Cultura, do presidente da Funarte ou de um secretário de Cultura pode alterar substancialmente a política e interromper editais que estavam sendo fundamentais para o sustento de um grupo de artistas”, assinala. 

Lacerda enfatiza que “não se deve glamourizar a condição de independente, para não correr o risco de cair numa visada de classe média, entre artistas que conseguem manter o mínimo para sobreviver mesmo sem um contrato de trabalho mais longevo”. “Entre os artistas independentes das classes populares isso não existe. Muitos abandonam a vocação pela falta de condição material. Acabam tendo que viver uma vida abafada em trabalhos precarizados, porque precisam ter o que comer, pagar suas contas, ter o que vestir, onde morar. Aliás, para uma boa análise é preciso incluir as questões de classe, que ainda são centrais no Brasil”, ressalta. 

Cacá Machado define como “cruel” o cenário para quem não consegue acessar editais ou assinar contrato com uma gravadora, mas sublinha que “as possibilidades são múltiplas, sempre erráticas e complexas”. Ele toma como exemplo a própria experiência como músico, quando, ao lado de nomes fundamentais da cena contemporânea paulistana, como Tulipa Ruiz e Metá Metá, apostou no modelo associativo proposto por Maurício Tagliari, responsável pelo estúdio YB Music. 

“Ele não nos cobrou nada para gravar, só queria editar musicalmente a obra, e assim fomentou uma cena importantíssima. Gravamos nossos discos sem edital e sem um estúdio grande, graças a esse modelo de negócios, com a óbvia vantagem de estarmos em uma metrópole como São Paulo”, relembra ele, para quem tal acontecimento só foi possível “em função do avanço tecnológico, que barateou muito os custos de produção de um disco”. Mas essa, como diria Charles Gavin em seu programa “O Som do Vinil”, embora intimamente relacionada, já é uma outra história.