A socialite carioca Narcisa Tamborindeguy visitava uma galeria de arte em Londres para um programa de TV quando, em uma quebra de protocolos, ela toca em obras expostas, sendo imediatamente alertada que não deveria fazê-lo. A reação, bem a seu modo, foi repetir para a audiência uma frase que costuma aparecer nas plaquinhas de museus e galerias mundo afora: “Don’t touch, it'is art”. Claro, virou meme. E um meme tão conhecido e disseminado que, para muita gente, especialmente os cronicamente online, basta ver um frame do vídeo original, em que Narcisa aparece com um microfone em punho e expressão assustada, para decodificar a mensagem. E é justamente esta a imagem que ilustra o grupo “Verní Beagá” no WhatsApp, que, reunindo 238 membros, se apresenta com uma atrativa descrição: “Open arte, open bar: pela popularização das vernissages”.

@caco.bolado DON'T TOUCH, IS ART! Narcisa iconica demais! #narcisa #aiqueloucura ♬ som original - Caco Bolado

“A escolha da foto dela é para brincar com isso, para dessacralizar esse lugar que as exposições de arte ocupam no imaginário, questionando esse distanciamento entre o artístico e popular. Não é um estímulo a violar as regras das exposições, tocar e danificar obras, mas, sim, romper com a lógica que torna esses espaços excludentes”, reflete a historiadora, artista visual, atriz, arte-educadora e produtora audiovisual Flora Maurício, que, em 27 de março de 2022, decidiu levar para o aplicativo de conversas instantâneas mais usado no Brasil o grupo criado por ela, originalmente, no Facebook em 2016.

A história toda começou a partir de uma pesquisa que Flora vinha desenvolvendo por conta própria. “Por já frequentar o circuito de arte, fui percebendo coisas que me incomodavam, como a rara presença de pessoas negras nas aberturas de mostras. Notei que, por mais que fosse um evento aberto ao público, havia uma barreira que impedia que mais pessoas frequentassem esses ambientes, que mantinham um apelo de exclusividade”, cita. Mas, a partir de sua própria vivência, ela percebeu que era possível quebrar esse sistema. “Já nessa época, muito no boca a boca, eu e meus amigos falávamos sobre essa agenda de vernissages, que passamos a ir juntos”, expõe. “Foi quando, juntando as duas coisas, decidi criar o grupo”, complementa.

Visitante observa obras em exposição na mostra '1000 grau - exposição coletiva', na Galeria Mama Cadela, em cartaz até dia 28 deste mês | Foto: Flavio Tavares/O TEMPO

No começo, era a própria Flora que fazia essa curadoria de eventos. Com o tempo, no entanto, a ideia foi ganhando vida própria. “Acho que a grande virada veio quando migramos para o WhatsApp. Talvez, por ser um aplicativo que usamos muito, houve um aumento no engajamento das pessoas. Tanto que, hoje, é também um lugar para artistas divulgarem seus trabalhos, anunciarem seus eventos”, assinala.

Arte, encontro, performance e política

No grupo “Verní Beagá”, mais do que fazer uma crítica popular das exposições, há muita troca de informação sobre outros atrativos das inaugurações, como a disponibilidade de comida e bebida. “Por isso o ‘open arte, open bar’ da descrição”, situa Flora Maurício, idealizadora da coisa toda, mencionando que, por vezes, quem chega primeiro em um evento já costuma fazer um “review” do programa. 

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Há também espaço para debates de viés político e social no grupo. Caso, por exemplo, de reflexões sobre os efeitos das novas ocupações urbanas sobre a população que já estava nestes locais ou da articulação de protestos contra o desmonte de políticas públicas para a cultura. “Em oposição ao fechamento do BDMG Cultural (que, por decisão do conselho do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, vai encerrar suas atividades no fim deste ano), fomos em peso na abertura da última mostra”, lembra Flora, fazendo menção à “Teimosia Vegetal”, coletiva de Ambuá e Izabella Coelho, que reflete sobre a reivindicação de outros futuros e apresenta uma série de esculturas e instalações com espécies do bioma urbano da capital mineira. A exposição foi inaugurada no mês passado na galeria do equipamento.

O apelo político, claro, não está restrito a circunstâncias pontuais, mas atravessa toda a dinâmica proposta pelo grupo. “Vejo que a nossa presença nesses espaços funciona como uma performance. Muitas vezes, até por levar mais movimento para as vernissages, que geralmente eram mais esvaziadas, entendidas como um evento para um seleto grupo de convidados, causamos estranhamento”, ressalta Flora, mesmo reconhecendo que, nestes oito anos em atividade, houve, sim, avanços no sentido de tornar as vernissages – e as próprias galerias de arte e museus – espaços mais democráticos.

“Cresceu o número de pessoas negras nesse circuito. Também cresceu o número de artistas não brancos com obras em exposição, até porque, esta é uma pauta em voga e uma demanda comercial. Mas, nos dois casos, ainda é pouco”, examina.

Os artistas nas galerias

De certa forma, as observações de Flora Maurício encontram respaldo em uma minuciosa pesquisa realizada pela galerista e curadora Laura Barbi, apresentada em 2022 como parte de sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Após catalogar as 12 principais galerias de arte contemporânea que representam com exclusividade seus artistas em BH – chamadas galerias primárias –, a estudiosa percebeu que a maioria estava localizada na região Centro-Sul de BH, o que, por si, pode representar uma barreira ao acesso para pessoas que vivem em outras regiões. 

Em seguida, Laura fez, em junho de 2022, um levantamento dos 264 artistas representados por esses espaços no que diz respeito à sua idade, naturalidade, gênero e raça. “O que esse inventário indica é que as galerias de BH representam, em sua grande maioria, artistas naturais da região sudeste do Brasil (77,1%), com idade entre 33 e 62 anos (66,5%), do sexo masculino (63,3%) e brancos (90,4%)”, aponta a autora na tese “O sistema das artes em Belo Horizonte”, cujos resultados revelam que o incômodo que levou à criação do grupo “Verní Beagá” tem muito a ver, também, com uma realidade pouco diversa de artistas representados – e legitimados – pelas principais galerias belo-horizontinas.

“Comprovamos, aqui, a necessidade da tomada de consciência e a primordialidade de se reparar as injustiças em relação à sub-representação não só de artistas mulheres, mas principalmente daqueles negros e indígenas. Apesar de não haver dados oficiais, entendo que a mesma questão se aplica também à pouca representação de artistas LGBTQIAP+. É necessário um estudo mais aprofundado como forma de enumerar essa disparidade. Posto isso, as galerias, seus diretores artísticos e curadores, assim, têm o dever, enquanto agentes legitimadores, em combater a desigualdade de gênero e raça”, alerta Laura, à frente, desde 2017, da GAL – Arte & Pesquisa.

Diversidade para oxigenar as artes

Mais uma voz a engrossar o coro por uma maior diversidade na cena das artes visuais de BH, Flaviana Lasan, curadora e assistente regional cultural na Fundação Nacional de Artes (Funarte), reflete que as galerias, hoje, são provocadas a ecoar não só o discurso das dissidências, muito em voga atualmente, mas também de ser um espaço para que essas dinâmicas sociais sejam possíveis. Nesse sentido, ela indica que a diversificação do perfil de artistas representados e as próprias vernissages, quando acolhem públicos variados, podem se revelar um dispositivo importante, causando uma movimentação com potencial para oxigenar essa cena. “A diversidade tende a provocar uma fruição que pode ser determinante para o desenvolvimento dessa cadeia das artes na capital mineira”, reflete, falando sobre algo que já viu na prática.

“Na última mostra que fiz, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, convidei a associação de cozinheiros quilombolas para preparar o coquetel e fiquei prestando atenção nessas interações. Percebi que a vernissage possibilitava uma experiência didática rica ao reunir colecionadores, gestores públicos, entusiastas, familiares e convidados de artistas… Uma massa muito diversificada, pessoas que vivem realidades diferentes, que poderiam ter uma visão estereotipada uns dos outros e que, de repente, estão falando de um mesmo assunto: a arte contemporânea”, analisa Flaviana, rememorando a experiência vivida por ela no lançamento de “Aragem em mãos que ardem: Carolina”, exposição que, em abril, reuniu obras das artistas visuais Ana Pá e Flavia Carla dos Reis, e poemas da escritora, compositora, cantora e poetisa brasileira Carolina Maria de Jesus.