Em uma noite imaginativa, com a mente inquieta, Lívia Gaudencio despertou de um sonho vívido e um tanto quanto estranho. As formas, logo ao acordar, ela reconheceu de pronto: lembravam uma produção de cinema, com direito a trilha sonora. E a música tema, que depois ficou martelando em sua cabeça, era “Por quem os sinos dobram”, faixa-título do nono álbum de estúdio solo do cantor e compositor Raul Seixas, lançado em 1979.
“Coragem, coragem/ Se o que você quer/ É aquilo que pensa e faz/ Coragem, coragem/ Eu sei que você pode mais”, canta a atriz, diretora, dramaturga e roteirista belo-horizontina ao recordar das fabulações de seu inconsciente.
“É engraçado porque tinha tudo a ver com o momento que eu estava vivendo. É uma música que traz essa carga meio motivacional, que fala de capacidade e ela estava no meu sonho justamente na época em que estava realizando o meu primeiro grande projeto, participando da sala de roteiro de uma série para uma grande plataforma de streaming”, recorda, referindo-se à produção “Raul Seixas, Sou Eu”, produzida pelo Globoplay em parceria com a O2 Filmes, que deve estrear ainda no primeiro semestre desse ano, narrando, claro, a trajetória de vida do cantor que, àquela altura, havia decidido fazer uma ponta também nos sonhos de Lívia.
Como o sábio chinês do universo “raulseixista” – aquele que não sabia se ele era um sábio chinês que sonhou que era uma borboleta, ou se era uma borboleta sonhando que era um sábio chinês –, a mineira também não sabe muito bem precisar se acordou de sonhos intranquilos metamorfoseada em uma fã do músico baiano ou se a paixão pelo trabalho do artista já estava lá antes de se aproximar mais e mais de sua história. Certo mesmo é que a nova empreitada representou, para ela, um passo importante, fruto um longo processo de preparação.
“Desde muito cedo, sempre gostei de criar historias. E comecei a fazer isso, profissionalmente, pelo teatro, porque é a arte mais acessível: para fazer uma peça, bastava ter um expectador na minha frente. Mas, ao mesmo tempo, sempre namorei o audiovisual”, reflete ela, que cursou teatro na Faculdade de Artes Cênicas, em Belo Horizonte, onde também fez um curso na Escola Livre de Cinema, que emendou com um curso de pós-graduação em Vídeo, Cinema e TV, feito em São Paulo, onde viveu por alguns anos.
A estreia assinando uma dramaturgia própria no teatro foi há 15 anos, com a premiada peça infantil “A Fantástica Floresta”, realizada com o grupo O Trem, cujo repertório ganhou uma mostra especial no Centro Cultural Banco do Brasil - Belo Horizonte (CCBB BH), com apresentações até o dia 10 de fevereiro. No evento, que celebra os 18 anos da trupe, cinco espetáculos autorais estão sendo montados, com apresentações de sexta a segunda. Um acontecimento que funcionou, para Lívia, como uma bem-vinda retrospectiva.
Aliás, uma peça inédita em BH encerra a temporada da mostra: “Margot e a Árvore da Vida”, mais recente trabalho dramatúrgico para o teatro realizado pela belo-horizontina. “Com essa sequência de apresentações, percebi que amadureci, que meu texto amadureceu. Percebi que, do primeiro trabalho até o último, segui produzindo e persistindo, tendo muitas ideias. Tenho até medo de dizer isso e dar azar, mas… Nesse tempo todo, nunca sofri com bloqueio criativo”, celebra.
Caminhos para o audiovisual
Enquanto saiam os textos para o teatro, Lívia Gaudencio seguia seu caminho rumo à produção audiovisual. Nesse ínterim, lançou duas webseries e alguns curtas, que vê, hoje, como uma realização mais caseira. O salto rumo à profissionalização veio na época em que participou de uma aula magna de roteiro com Paulo Morelli, um dos sócios da O2 Filmes, que, na TV, atuou na diretor-geral da série “Cidade dos Homens”, além de dirigir e escrever quatro episódios. “Depois desse evento, conversei com ele, que me incluiu em um grupo de desenvolvimento, trabalhando em projetos que ainda não tinham destino certo”, recorda.
A partir dessa experiência quase laboratorial, e graças ao que considera uma grande sintonia entre os dois, Lívia foi convidada, em 2021, a integrar a sala de roteiro de “Raul Seixas, Sou Eu”. Ao lado dela, estavam o próprio Paulo Morelli, idealizador do projeto, Denis Nielsen e Marcelo Montenegro – os dois últimos por trás de séries como “3%”, da Netflix.
O processo de criação dos roteiros teve apoio de uma pesquisadora, responsável por checar datas, locais e nomes. “Nossa responsabilidade era fazer a costura, a partir dos fatos reais, o que envolve criar uma ficção que amarre as histórias”, menciona, reconhecendo que, como Raul Seixas deixou um rico acervo de gravações e entrevistas, além de ser citado em histórias curiosas por diversos outros artistas, ela própria não resistiu à tentação de fazer pesquisas alternativas, por conta própria. E, óbvio, aproveitou para mergulhar nas suas músicas. “Algumas de suas letras, nossa… São de explodir a cabeça”, elogia.
Junto, o time de roteiristas construiu as escaletas do texto, chegando a um consenso sobre o que devia acontecer em cada episódio, que passaram a ser desenvolvidos por cada um deles. Lívia, no caso, assina a dramaturgia do episódio três, de um total de oito que compõem a produção.
As séries nunca filmadas
E se o próprio “Carimbador Maluco” foi responsável por selar o passaporte de Lívia Gaudencio como roteirista de série, a verdade é que o hábito de criá-las já fazia parte da rotina dela há bem mais tempo – ainda que apenas como exercício recreativo para seus filhos, Cecília, de 11 anos, e João, de 7.
Os dois, não raro, escutam a mãe narrar historinhas inéditas, que, mais tarde, podem ou não ser trabalhadas em textos dramatúrgicos. “Nessas contações, eu crio praticamente séries, com casos que começam de um jeito e vão se transformando a cada dia, com personagens que vão evoluindo, ganhando camadas”, comenta ela, que admite: quando está mais cansada, abre mão da inventividade e recorre a narrativas que já estão no seu repertório.
Mas, ainda que faça questão de nutrir seus filhos com arte e cultura, Lívia pontua que, em sua família, não havia, até então, ninguém que se dedicasse profissionalmente ao fazer artístico.
“Tenho familiares talentosos, autodidatas, mas não havia nenhum artista que tivesse seguido esse caminho. Mais recentemente, inclusive, descobri que minhas duas avós (materna e paterna) fizeram teatro na igreja, mas não foram além disso, até porque havia muito estigma com seguir carreira na cultura”, avalia, reconhecendo que o temor que esse trabalho não fosse suficiente para pagar as contas surgiu quando ela decidiu fazer do gosto por contar histórias uma profissão. “Precisei provar que era possível”, assinala.
Novo projeto
Agora, enquanto finaliza a temporada de apresentações com a companhia O Trem, no CCBB BH, e aguarda pelo lançamento da série “Raul Seixas, Sou Eu”, no Globoplay, Lívia Gaudencio se prepara para filmar um novo curta-metragem, em que assina o roteiro, atua e é codiretora. “É uma produção que marca esse momento de mais maturidade”, expõe, dizendo que deseja realizar as filmagens em fevereiro.
Com título provisório de “Onde está você agora?”, o filme vai narrar a história de uma mulher que lida com a perda gestacional e, ao mesmo tempo, precisa cuidar da mãe com Alzheimer. “Essa personagem se desdobra para cumprir esses tantos papéis. E, nesse percurso, ela vai encontrando o seu caminho, uma forma de dar conta”, destaca. O filme ainda não tem data de lançamento prevista: a ideia é que ele circule por festivais antes de chegar ao público, talvez ganhando, no futuro, uma estreia em BH.