O que é o sonho americano senão uma fantasia de consumo sem limites? Comer, viajar, vestir-se sem entrar em pânico com a fatura do cartão de crédito. Como em tantas outras produções, os protagonistas do cineasta norte-americano Sean Baker perseguem esse sonho. Mas, nos filmes dele, o caminho até lá é torto, trilhado às margens da sociedade e frustrado. Assim também é com sua comédia vencedora da Palma de Ouro “Anora”, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (23/01) e ensina: nascer sem poder é, quase sempre, viver e morrer da mesma forma. 

Anora é o nome da protagonista, uma dançarina erótica (e garota de programa, embora ela negue que seja) que prefere ser chamada de Ani. Aos 23 anos, ela é boa no que faz. Deixa a voz um tom mais agudo e encanta cliente após cliente na casa noturna onde trabalha em Nova York. A interpretação estrondosa (em algumas cenas, literalmente) é de Mikey Madison, jovem atriz dos filmes mais recentes da franquia “Pânico” e excelente desde a adolescência na série “Better Things”, disponível na Disney+.

De repente, um príncipe encantado entra na vida de Anora pedindo uma dança, depois uma tarde de sexo, então uma semana com ele por US$ 15 mil e, aí, a mão dela em casamento em poucos dias. Mas ele não se parece em nenhum aspecto com o Richard Gere galanteador de “Uma Linda Mulher”. É um russo magricela de 21 anos que faz sexo como um adolescente inexperiente, reveza entre maconha e videogame e diz estar “sempre feliz” enquanto gasta o dinheiro do pai em viagens de luxo. O que diferencia Ivan, também chamado Vanya, de um homem heterossexual mimado qualquer é sua família de empresários russos bilionários.

Os encantos de Ivan são irresistíveis para Anora. Ele é sua chance de mudar de vida para sempre e, de brinde, oferece altas doses de diversão. Ela vive duas semanas em um paraíso capitalista até que a verdade bate à porta: a família de Ivan não está feliz que ele tenha se casado com uma prostituta — como eles insistem em chamá-la — e não pretende admitir que o matrimônio continue.

É a partir deste ponto que o filme, até então eufórico e, por vezes, quase romântico, muda de tom para se transformar em uma comédia de erros na linha do consagrado “Fargo”, dos irmãos Coen. De um lado, a missão dos funcionários da família de Ivan é obrigar o casal a anular o casamento. Do outro, o objetivo de Anora é garantir que sua nova vida não seja arruinada antes mesmo de começar. Para isso, ela está disposta a desafiar, morder e quebrar quem ou o que for preciso.

“Anora” se acha mais engraçado e esperto do que é. Ainda assim, é de fato um filme engraçado e esperto na maior parte do tempo. O tom é muito distante do quarto longa de Baker, “Projeto Flórida”, que o apresentou ao grande público em 2018 com uma história tocante sobre desigualdade social nos EUA. O novo trabalho está mais próximo da intensidade de seu “Tangerine”, que segue em ritmo frenético uma prostituta trans tentando acertar as contas com um cafetão em Los Angeles.

Em alguns momentos, a intensidade cômica de “Anora” entrega o que promete, como quando os personagens têm que lidar com problemas banais, como o guinchamento de um carro no meio de uma perseguição no bairro de imigrantes russos e do Leste Europeu em Nova York. Mais um parêntesis de humor acentuado é o surgimento, por alguns segundos, do clássico pop "All The Things She Said", do duo russo t.A.T.u — tão conhecido pela polêmica do falso flerte entre as cantoras quanto pelo refrão chiclete. 

Em outros trechos, a graça se perde, como em um diálogo mais extenso do que deveria sobre uma potencial tentativa de estupro. Os minutos finais sintetizam essa corda-bamba da narrativa e, longos, são um ziguezague de emoções.

No coração da comédia — e de Anora —, a mensagem é menos divertida e mais realista: provavelmente, as piores intuições sobre um rapaz rico e excepcionalmente mimado estão corretas, e o sonho americano tende a ser apenas um vislumbre. Ao fim, porém, o espectador pode descobrir, como a própria Anora, que talvez o longa esconda uma inusitada história de amor.