Aquele bem-estar que invade o corpo logo após finalizar um livro ou a sensação de completude que surge depois de sair do cinema não são apenas coisa da imaginação. Consumir cultura e participar de atividades artísticas e culturais contribuem, sim, para melhoria da saúde mental. A conclusão vem de pesquisas e estudos, como o realizado pela Frontier Econimics em parceria com o Centro Colaborador para Artes e Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O levantamento revelou que esse tipo de prática, mesmo quando realizada ocasionalmente, pode levar a uma série de benefícios, como alívio da depressão, da dor e da dependência de medicamentos. Tendo ouvido 13 grupos diferentes de pessoas, de jovens até idosos, o relatório identificou que o envolvimento com a arte proporcionou ainda o desenvolvimento cognitivo e a proteção contra o declínio mental.
Lançada recentemente, a quinta edição da pesquisa Hábitos Culturais, realizada pela Fundação Itaú em parceria com o Data Folha, fez o recorte desse cenário para os brasileiros. O levantamento indicou uma relação direta entre a participação de atividades culturais e melhoria da saúde mental.
Diminuição de ansiedade, estresse, tristeza e sensação de solidão, além da melhoria na qualidade de vida e nos relacionamentos interpessoais foram alguns dos pontos destacados pelas 2.494 pessoas ouvidas pelo estudo, realizado em outubro de 2024 em todo o país. Gerente do Observatório Fundação Itaú, Carla Chiamareli comenta que o que se tem observado na série histórica da pesquisa é que muitas das atividades culturais são valorizadas pelos brasileiros justamente em função de aspectos como sociabilidade e comunicação.
“Ou seja, muitos dos entrevistados preferem ir a um museu ou a um teatro como um programa para ser realizado com familiares ou amigos. Nesse sentido, é fundamental observarmos que o setor cultural desempenha esse papel na sociedade de promover encontros e a importância disso para a promoção do bem-estar e da saúde mental”, assinala.
Ela destaca também que um dos objetivos da pesquisa é justamente identificar os impactos positivos do setor cultural na vida dos brasileiros. “Ao observar que é alta a taxa dos entrevistados que observam essas questões relacionadas à diminuição do estresse e de solidão e na melhoria do relacionamento, esperamos indicar a necessidade da ampliação de políticas de acesso à arte e cultura enquanto benefício para a sociedade”, pontua.
Psicóloga, atriz e palhaça, Lilian Amaral argumenta que o fazer cultural estimula e enriquece subjetividade do ser humano, oferecendo ferramentas para enfrentar a realidade. “Quem consome cultura e artes adquire mais recursos para lidar com as dificuldades da vida. Isso ocorre porque a arte proporciona diferentes olhares sobre o mundo”, aponta, destacando que livros, filmes ou mesmo uma música podem levar alguém a viver emoções e histórias talvez jamais experimentadas na vida cotidiana.
“A pessoa não fica tão presa ao que a incomoda, porque pode direcionar seu pensamento e energia para outra atividade. E, no meio dessa atividade, podem surgir processos internos que trazem respostas para problemas que antes pareciam sem solução”, sinaliza.
Lilian se interessou pelas artes cênicas ainda na infância, mas, na hora de escolher a profissão, optou pela psicologia por uma questão de empregabilidade. Mas o desejo de atuar nunca desapareceu. Então, depois de dez anos de formada, ela voltou a fazer cursos de teatro e encontrou a palhaçaria. Hoje, Lilian concilia seus trabalhos na clínica com o de atuação com a palhaça Brigitte Guardô.
“Conforme estudei e pesquisei, entendi o quão potente é a palhaçaria e o conhecimento que ela traz. O nariz do palhaço, por exemplo, é a menor máscara do mundo, mas, ao invés de esconder, ele revela. Costumo dizer que o palhaço é a gente vezes mil. Tudo — defeitos, qualidades, características — fica mais aberto, exposto. E como nós, humanos, estamos sempre mudando, nosso palhaço também muda. Ele é sempre o mesmo, mas sempre diferente, porque reflete o que somos”, aponta a psicóloga.
‘A arte enche meu tanque das necessidades’
A cada livro lido ou espetáculo teatral assistido, a publicitária Júlia Cruz, de 33 anos, percebe o mundo com mais cor. “É engraçado pensar como essas atividades me deixavam motivada. Terminar um livro é de um deleite que nem sei explicar. Sair do teatro com a cabeça fumegante de ideias, interpretações, conexões com o contexto de vida é de encher o coração de vida. A arte me faz sentir viva. Pensante”, aponta.
Ela conta que lê todos os dias, vai ao teatro pelo menos uma vez ao mês e visita os museus de Belo Horizonte todas as vezes em que há uma exposição nova. E, quando ficou grávida, percebeu ainda mais latente a necessidade de estar em contato com a arte.
Até 2020, seus fins de semana se resumiam a ir ao teatro e ao cinema. Mas na pandemia, com o fechamento desses equipamentos, sua rotina foi alterada. “Em 2021, eu e minha esposa tivemos nosso bebê e mergulhamos na maternidade em plena pandemia. Aí é que não teve mais cinema e teatro, e a leitura perdeu o ritmo”, recorda. Para completar, no puerpério, ela se sentia distante de si mesma.
“Não conseguia ler um livro. Que angústia me dava. Via títulos que eu queria conhecer e simplesmente não conseguia! Levei isso para a terapia, e, aos poucos, as coisas foram entrando nos eixos, e eu conseguindo retomar o que me fazia bem: ler. Comecei a me sentir viva de novo”, celebra. “A arte enche meu tanque das necessidades. Me deixa feliz, de bem com a vida”, aponta.
A médica Denise Cristiane Costa, de 40 anos, revela que percebeu o quanto expressões artísticas diversas lhe faziam bem durante uma de suas férias, justamente porque se propunha a ir museus e teatros no período de descanso.
“Então, me interroguei porque não poderia fazer esses programas fora das férias. A princípio, comecei a fazer programas que nunca tinha feito, como ir para óperas. Este ano, fui a duas apresentações no Palácio das Artes e saí emocionada de ambas! Minha rotina é muito cansativa, e esses programas culturais tornam a semana mais leve. Eles tiram o peso, aliviam a tensão e me desconectam do estresse diário”, comenta.
Segundo a médica, ela se consegue desligar do resto do mundo ao participar de programas de arte. “É como se estivéssemos ali apenas para apreciar o espetáculo, seja ele qual for. O impacto disso na minha saúde foi enorme. A experiência mudou minha percepção e sensibilidade sobre muitas coisas. É curioso, mas vi peças de teatro que contavam situações descritas por pacientes, porque a arte imita a vida, e isso me leva a uma reflexão sobre a dimensão do poder dela sobre nós, seja nos sensibilizar, nos provocar empatia ou simplesmente fazer o tempo parar só para você apreciar o quanto aquilo é incrível”, salienta.
As sensações provocadas pela arte podem ser as mais variadas, como relaxamento e alegria, mas também raiva ou até angústia – o que não significa que seja ruim. “Às vezes, consumir arte toca em uma ferida e gera desconforto, levando a pessoa a buscar respostas ou, em alguns casos, a evitar lidar com aquilo, tentando esquecer a sensação que surgiu”, comenta a psicóloga Lilian Amaral.
“A arte tem essa capacidade de alcançar camadas profundas do inconsciente, da memória e do afeto, que camadas que, no corre-corre do dia a dia, não acessamos com tanta facilidade. Seja qual for o sentimento despertado, a arte ajuda a reconhecê-lo, e, a partir desse reconhecimento, é possível tratá-lo, no sentido de dar contorno, entender o que se sente, o que nos move, o que nos emociona ou o que nos deixa indiferentes. Por isso, a arte é uma ferramenta poderosa de autoconhecimento”, sintetiza.
Mulheres são as que mais sentem efeitos da arte
Um dos dados que chama a atenção na pesquisa é que as mulheres percebem mais a mudança no humor ao participarem de uma atividade cultural em relação aos homens. O levantamento mostra que a diminuição da sensação de tristeza com a realização de atividades culturais é 5 pontos maior entre o público feminino (88%) do que entre masculino (83%).
A pesquisa também apurou que as mulheres também são as que mais sofrem com problemas mentais ou emocionais: 51% contra 28% dos homens. “Essas diferenças podem ser explicadas pela desigualdade de gênero no país, que expõe as mulheres a questões como violência e sobrecarga de trabalho (remunerado e não remunerado). Nesse contexto, os resultados da pesquisa destacam a importância da cultura como uma estratégia para promover a equidade entre homens e mulheres”, pondera Carla.
Além disso, a desigualdade social é um fator determinante para o acesso à arte e cultura no Brasil. Em relação à renda, todos os indicativos mostram que as classes A e B sentem melhor os efeitos da cultura que das classes D e E, como diminuição do estresse e da solidão e melhora de relacionamento com pessoas de casa e no trabalho.
O mesmo vale para escolaridade, já que grupos com formação superior declararam maior incidência (48%) do que os grupos com apenas o ensino fundamental (37%). “O acesso ao cinema, por exemplo, chega a ser quatro vezes mais por membros das classes A/B (60%) em contraposição à D/E (14%)”, diz Carla. Essa desigualdade no setor pode ser explicada tanto pelo fato de as classes mais baixas precisarem atender primeiro às necessidades básicas, como alimentação e moradia, mas também porque pessoas com mais recursos e informação tendem a gastar mais com atividades culturais.