O assassinato de um homem no Parque Municipal de Belo Horizonte, na madrugada de 4 para 5 de dezembro de 1946, chocou a população da época não apenas pela brutalidade do crime, cometido a facadas, mas também por jogar luz a práticas que, para a sociedade de então, deveria seguir na penumbra. As investigações, acompanhadas de perto pela mídia, afinal, oficializavam como aquele espaço da cidade, geralmente ocupado por famílias durante o dia, se tornava, ao anoitecer, o “Paraíso das Maravilhas”, um lugar de encontro e diversão para homens gays – conforme registra o livro de estreia de Luiz Morando, publicado em 2012.

O “crime do parque”, como o caso ficou conhecido, foi o estopim para que os 182 mil m² de área verde integrados ao hipercentro belo-horizontino fossem cercados por grades, tendo seus portões de acesso rigorosamente fechados à noite – uma medida que tinha a pretensão não apenas de responder ao assassinato, mas também de restabelecer a moralidade. Desde então, por quase 80 anos, o Paraíso das Maravilhas permaneceu interditado. Até agora, quando um grupo de performers, coreografados pelo cineasta Ricardo Alves Jr. e pelo roteirista Germano Melo, reinauguram simbolicamente esse éden hedonista no longa “Parque de Diversões”, que estreia nesta quinta-feira (30), tendo como principal locação o parquinho infantil localizado no Parque Municipal.

A obra, premiada como Melhor Filme de Ficção no Barcelona Queer Film Festival e apresentada em diversos festivais, entre eles a 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, registra uma cena que, como na década de 40, segue provocando reações: o cruising, anglicismo usado para descrever uma modalidade de sexo que acontece, necessariamente, em lugares abertos, geralmente públicos, envolvendo anônimos – isto é, pessoas que não se conhecem e, geralmente, não têm a menor intenção de se conhecer para além daquele encontro furtivo.

O registro audiovisual do cruising não é propriamente uma novidade: a modalidade já compôs a paisagem narrativa de outros tantos títulos. No nacional “Vento Seco” (2020), uma mata se torna o lugar de encontro para o sexo; na produção mexicana-estadunidense “Rotting in the Sun” (2023), as transas acontecem em uma praia nudista, em clima hedonista e até com um quê de comicidade; no francês “Um Estranho no Lago” (2012), o cenário é um lago, usado como destino naturista pela comunidade gay.

A recorrência com que o tema é filmado, em boa parte, se deve a características cinematográficas dessas dinâmicas, que costumam se desenrolar em lugares ermos, conferindo uma adição ao clima de suspense natural do que pode acontecer nesse encontro de pessoas desconhecidas – observadas à espreita por outras figuras anônimas.

Ciente desses atributos, Ricardo Alves Jr. entendeu que não precisava reforçá-los na sua produção. Também compreendeu que, ao contrário de todas outras produções, não precisava emoldurar a prática como mero elemento cênico de uma narrativa maior: em “Parque de Diversões”, distribuído pela Cajuína Filmes, o cruising é o protagonista – e aqui reside um dos trunfos da obra: a coragem de dedicar um longa inteiro ao registro, ainda que ficcionalizado, de uma cena que corre às sombras, mas está longe de ser incomum nas grandes cidades. O resultado é uma experiência estética visceral, que dá de ombros a certos cânones do fazer cinematográfico, do que pode ou não ser filmado na Sétima Arte.

O voyeurismo é um dos temas aspectos do cruising abordado no filme 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação
O voyeurismo é um dos temas aspectos do cruising abordado no filme 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação

Outro êxito digno de nota diz respeito ao elenco, que, por meio de um chamamento público, tem o mérito de reunir representantes de uma nova geração de performers com atuação em BH, caso de Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal, Vina Jaguatirica, Will Soares e Marlon de Paula – este último com presença também no circuito das artes visuais da cidade.

O registro de uma cena ‘clandestina’

Antes da exibição na Mostra Tiradentes, Ricardo Alves Jr. avisou: “Parque de Diversões” não é um filme “sobre sexo”, mas, sim, “de sexo”. Mais precisamente, um filme de cruising, que entende e registra muito bem os códigos específicos desse universo, entre eles o silêncio: em uma aposta ousada, e acertada, a produção apresenta uma coreografia erótica, em boa medida explícita, com raríssimos diálogos – a respiração ofegante, o som da sucção e trilhas sonoras, recorrendo principalmente a temas eletrônicos, ocupam a paisagem sonora.

Cena do filme 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação
Cena do filme 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação

Nos 73 minutos de duração, ninguém se apresenta, diz seu nome, se tem família, profissão. A vida pregressa, fora daquele lugar, para além daquela noite, não interessa. E quem está ali, quem topa participar, aceita também esse pacto de distanciamento, de suspensão das identidades. O que importa é puramente o sexo, em toda sua diversidade.

E a diversidade é outro aspecto bem elaborado no longa, não apenas pelos corpos em cena – estão ali homens cis e trans masculinos, travestis, pessoas magras e não magras, brancas e não brancas, um personagem com deficiência –, mas também pelas possibilidades de trocas sexuais que vão surgindo sequencialmente – que vão da simples masturbação até dinâmicas mais sofisticadas, que envolvem jogos de dominação e submissão, a tara por pés ou pelo cheiro do corpo, além de outras tantas alternativas. Um horizonte erótico, diga-se, mais criativo do que aquele visto nas filmagens amadoras que circularam no início deste ano nas redes sociais, causando polêmica e até promessa de punição.

Deliberadamente, aliás, “Parque de Diversões” faz que seus espectadores também sejam incluídos nesse caleidoscópio de possibilidades de deleite erótico, sendo condicionados ao papel de voyeur. E não estamos falando aqui de um observador inexperiente. Ao contrário: conduzido por uma câmera que divaga sem pressa por paisagens até encontrar corpos, saliva, suor, sexo, cenas sobre as quais se detém por algum tempo até que, de novo, volta a se perder na paisagem, flutuando até alcançar outras cenas que lhe saciem o apetite, esse olhar é quase displicente, como o de alguém que está habituado àquela dinâmica.

Os atores Arthur Rogério e Dudu Nobre em sequência do longa 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação
Os atores Arthur Rogério e Dudu Nobre em sequência do longa 'Parque de Diversões' | Crédito: Ciro Thielmann/Divulgação

Um passeio voyeurista que só é interrompido em um momento: na sequência em que um rapaz, personagem de Arthur Rogério, descreve uma cena de sexo, que pode ou não estar acontecendo, para um homem cego, vivido pelo ator Dudu Melo. Na cena, os atores são posicionados de maneira que provoca a sensação de estarem encarando o espectador, que parece ter sido descoberto e feito, também, um confidente daquele momento. Um convite que faz especial sentido uma vez que, pela voz do ator, se revela o modo como o diretor Ricardo Alves Jr. e o roteirista Germano Melo entendem o sexo, contemplado, na obra, por um viés leve e divertido, celebrativo até – sem aquele peso moral, envergonhado e culposo que, culturalmente, é atribuído ao ato.

E, por ter uma visão desembaraçada do sexo, além dos planos mais abertos, que exploram a espacialidade do Parque Municipal, a direção do filme não evita os detalhes, registrados em planos fechados, que, para alguns, aproximam o título do gênero da pornografia – um tipo de comparação, geralmente pejorativa, que não chega a incomodar o diretor. “Para mim, ele transita entre o erotismo e o pornográfico, pensando no pornográfico como aquele gênero que é explícito. Eu não o classifico assim, mas não me ofendo que ele seja colocado nessa prateleira por outras pessoas”, garante, fazendo questão de distinguir: ainda que possa ser encarada como pornô, a obra não se localiza como parte dessa indústria.

SERVIÇO:
O quê. Estreia do filme ‘Parque de Diversões’, com direção de Ricardo Alves Jr., roteiro de Germano Melo e distribuição da Cajuína Filmes
Quando. Nesta quinta-feira (30), às 20h30. A partir de sexta (31), filme segue em cartaz com sessões às 17h40
Onde. Una Cine Belas Artes (rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes)
Quanto. A partir de R$ 13 (meia entrada). Ingressos disponíveis nas bilheterias do cinema e no site belasartescine.com.br/