Entre um desbravador da Antiguidade e uma feminista contemporânea, Elke Maravilha recusava a oferta por conta de sua peculiar modéstia, ao não se considerar à altura de uma homenagem “canônica”. “Ela dizia que biografia era para os grandes, e citava sempre Alexandre, o Grande e Simone de Beauvoir”, relembra Ton Garcia, que acaba de colocar na praça, pela editora Quixote+DO, “Elke Maravilha: Além das perucas, saltos e batons”.

A solução encontrada pelo escritor mineiro, natural de Belo Horizonte, foi trabalhar com histórias ouvidas da boca da própria Elke, durante um convívio intenso que começou em 2014, quando eles se conheceram em São Paulo e ficaram amigos. “Estar ao lado da diva, por um minuto que fosse, já era para mim um momento de muitas descobertas. Eu nunca imaginei que escreveria sobre ela!”, assegura Garcia.

Apesar disso, o convívio foi aumentando o interesse de Garcia pelas peripécias de Elke, e, de tanto insistir, ele conseguiu da futura personagem a autorização para anotar, ao longo dos anos, “fatos relevantes que ela contava sobre sua história de vida”, o que resultou em cinco cadernos. “A proposta, depois que ela já não estava mais entre nós, foi não só contar as histórias com as quais ela me presenteou em vida, mas também analisar o seu discurso, sob a perspectiva da Análise do Discurso Francesa”, explica o autor.

“Não digo que o livro é uma biografia, pois respeitei, desde o início, seu pedido de não fazer uma biografia sobre ela”, complementa Garcia, que, por meio de uma pesquisa acadêmica de pós-graduação, detectou em Elke “um discurso profundo, atemporal e forte, que pode ser lido agora ou daqui a 100 anos” com o mesmo impacto.

Polêmica

O desejo de “registrar fielmente as falas” nada ortodoxas e divertidíssimas da artista, que sempre teve a liberdade como primado, fundamentou a publicação, que, nesse sentido, a coloca em oposição a “Mulher Maravilha”, biografia em que o jornalista Chico Felitti afirma que Elke “fabulava” sobre a própria trajetória, como no caso da controversa nacionalidade. A artista morreu como “apátrida”, ou seja, não possuía cidadania de nenhum lugar, o que ela atribuía a perseguições políticas sofridas.

Em 1972, Elke chegou a ser presa pela ditadura militar. “Elke nasceu na Rússia e deixou isso claro em todas as entrevistas concedidas para programas de televisão, rádios, jornais, etc. Ela nunca escondeu ou inventou a sua nacionalidade para ninguém”, argumenta Garcia, que recorre a um trecho de seu próprio livro para defender tal ponto.

“Elke nasceu no território russo, mas, durante a guerra, seu pai, envolvido em movimentos políticos, foi considerado traidor da pátria, e, por isso, ela não conseguiu um documento para comprovar a sua nacionalidade. Porém, sua mãe, que era alemã e possuía uma posição influente em seu país, obteve os documentos alemães apenas para Elke, única filha do casal que nasceu no exterior. Elke nunca escondeu o fato de que possuía um passaporte alemão para viajar, mas isso não a tornaria alemã”, escreve Garcia, reforçando que Elke nasceu em Leningrado, atual São Petersburgo.

Em 2016, ele esteve ao lado dela no derradeiro espetáculo “Elke Canta e Conta”, no qual a artista compartilhava com o público momentos fugazes eternizados na memória e anedotas de sua rica travessia, ao mesmo tempo em que cantava em vários idiomas. 

Múltipla

“O ofício de cantora talvez seja o lado dela menos conhecido pelo grande público, até porque ela não tinha uma carreira oficial, esse talento ela mostrava nos palcos”, opina Garcia, que produziu um compilado de gravações de Elke com clássicos da MPB, samba, canções tradicionais nórdicas e até um cover em alemão de “Blowin in The Wind”, de Bob Dylan.

“Elke não se definia, até o final da vida ela falava que não sabia o que queria ser quando crescer. Ela era multi, versátil, surpreendente, apesar de dizer que tudo que fez foi no susto, da forma modesta que lhe era peculiar”, diz Garcia. Antes de estrear nas passarelas, graças a seu porte esguio e à beleza fulgurante, Elke era professora de língua estrangeira e se mostrava satisfeita com a profissão. O mundo artístico, porém, logo a capturou, num encontro definitivo que perdurou cinco décadas.

“Descobri que ela não era apenas a jurada do Chacrinha ou uma personagem de tantos outros programas de que participou na televisão brasileira, ela foi e é uma referência por onde passou, entendedora de diversos assuntos e muito relevante historicamente. Descobri que há muito mais de Elke para quem deseja conhecê-la para além de sua imagem icônica de perucas, saltos e batons”, referenda Garcia, numa alusão ao título de seu lançamento.

Ele salienta que a feitura do livro propiciou uma reflexão sobre a natureza dos textos autobiográficos, “que revelam sempre uma imbricação entre a dimensão individual e singular de uma existência e sua dimensão coletiva e histórica”. “Elke participou de momentos marcantes da história brasileira, posicionando-se com falas que revelam sua complexidade, suas contradições e a sua diversidade sociocultural. Seu discurso é artístico, midiático, político!”, arremata Garcia.

Derrubando estereótipos

O fato de que Elke Maravilha se converteu em ícone e personagem não é segredo para ninguém, tanto que atuou como si mesma em mais de uma oportunidade, e teve filmes como “Elke Maravilha Contra o Homem Atômico”, chanchada de 1978, e “Elke no País das Maravilhas”, de 2007, dedicados à sua figura exuberante e exótica.

A intenção de Ton Garcia com o livro “Elke Maravilha: Além das perucas, saltos e batons” foi, em diálogo com a artista, “desmistificar estereótipos que a mídia tradicional construiu em torno de Elke Maravilha”. “Para os dias atuais, é importante observar no livro a contextualização histórica das etapas de trajetória de vida de Elke”, pontua Garcia, ao citar “a efervescência dos programas de auditório na década de 1970 e as influências advindas da opressão da ditadura militar”.

Elke, que se insurgiu contra o regime, foi presa após rasgar cartazes de “procurado” com imagens do filho da estilista Zuzu Angel, que era sua amiga íntima. Stuart Angel foi torturado, morto e dado como desaparecido pelos militares, e o cinismo do regime irritou Elke, que não se conteve e acabou detida. Garcia revela em seu livro “a forma como Elke ajudou as demais presas políticas a se defenderem, sua amizade com a psiquiatra Nise da Silveira, suas visitas a um hospital psiquiátrico e seu papel de representante e defensora de grupos marginalizados”, episódios, segundo ele, “comumente ignorados pela grande mídia”.

“Elke Maravilha faz ecoar diversas vozes e visões de mundo, ideologias e imaginários, com sua persona multifacetada, plural, aberta ao outro, sempre disposta ao diálogo, ao acolhimento e à valorização da diversidade, das inúmeras maneiras de ser e de parecer, sobretudo aquelas distintas aos padrões sociais impostos”, finaliza Garcia.