TIRADENTES. Benedita da Silva gesticula o tempo inteiro enquanto Antonio Pitanga fala sobre "Malês". Ela é deputada federal pelo PT, esposa do ator e diretor e, durante a exibição do longa na 28º Mostra de Cinema de Tiradentes, que se encerra hoje, virou uma espécie de "maestrina", insistindo para que ele não se alongue demais nas respostas. Um dos grandes nomes do cinema brasileiro, Pitanga tem 85 anos, mas parece um jovem entusiasmado quando aborda o filme que consumiu quase três décadas para ser finalizado, sobre a famosa revolta de escravizados na Salvador de 1835.
"Esse é um projeto que levei 26 anos sonhando, sendo que 18 anos buscando caminhar e entender, junto com (a roteirista) Manuela Dias e com (o produtor) Flávio Tambellini, para fazer os apoios financeiros para um filme de época. Apesar de ter custado R$ 17 milhões, é um (trabalho de) baixo orçamento", afirma. Os recursos levantados foram na medida para que pudesse, em suas palavras, "ter um plano aberto, um Mercado, um veleiro, pessoas lutando", além de consultores que contribuíram muito para aumentar a veracidade da narrativa e das atuações.
Como os personagens principais são escravizados muçulmanos, houve uma grande preocupação com o idioma e os costumes."O filme tem muitas camadas. Essa busca por aprofundamento dos personagens se deu desde o primeiro momento. Começou nos ensaios, durante a pandemia, online, com a Iris (Gomes da Costa), nossa preparadora de prosódia. Ela fez uma coisa que achei muito interessante, fazendo a construção dessa prosódia a partir da vivência de cada ator", registra Samira Carvalho, que interpreta Abayomé, par romântico de Rocco Pitanga, filho de diretor.
"Eu sou de Piracicaba, interior de São Paulo, e o Rocco é do Rio. Nós contracenamos juntos em quase todo o percurso da minha personagem. O meu sotaque é mais carregado no R e o D e o T são mais marcados, e o que a Iris fez foi não anular essa característica, mas sim agregar para Abayomé, considerando que ela era uma mulher que falava árabe e estava aprendendo o português, não necessariamente porque ela queria,, mas porque fazia parte da existência dela no Brasil. Isso fica muito evidente na fala de cada personagem, porque ninguém fala igual, percebendo-se que são de diferentes regiões", destaca Samira.
O primeiro consultor de Antonio Pitanga foi o sheik Jihad, que o diretor conheceu durante as gravações da novela "O Clone", exibida em 2001 e 2002 na TV Globo. "Criei uma amizade com ele e descobri, por exemplo, que no Brasil tem 1,8 milhão muçulmanos, com casa de oração, mesquita e tudo mais. Para eu chegar a este universo, eu tive que pedir licença, já que não conhecia nada", conta. Mas Pitanga sabia muito bem o que queria ao abordar o tema, não muito diferente dos ideias que levou para a sua estreia na direção, com "Na Boca do Mundo", lançado em 1978.
"O primeiro filme fala de uma coisa muito importante, que, quase cinco décadas depois, vem acontecendo numa escala muito maior. Ele e 'Malês' são primos-irmãos de um olhar de um homem perplexo com a violência, com a invisibilidade, com o feminicídio e com todo tipo de preconceito. Em 'Na Boca do Mundo', são três personagens - um negro, uma loira e uma mulata - que se encontram no centro do mundo para discutir suas relações., 'Malês' mostra negros sequestrados que tinha detinham um real saber e vêm para o Brasil, especialmente para Salvador, e aqui se organizaram", assinala.
"Busco, dentro das vísceras de um país chamado Brasil, um acontecimento trágico acontecido naquela época e que não está tão distante do século 21. O preconceito continua batendo na nossa porta.Sou o mesmo cara daquele filme, querendo entender o porquê de tanta violência. Será que o ser humano não deu certo?", indaga Pitanga. Dentro desta perspectiva, ele sublinha que queria focar apenas no levante, calcando-se explicitamente na ação. "Não é um filme de Akira Kurosawa, que é de guerra e de macho", deixa claro o realizador, citando o cineasta japonês de "Ran" (1980).
Ele destaca que buscou um olhar mais feminino, enfocando também as mulheres dos líderes da revolta. É uma das razões para o convite a Manuela Dias para a escrita do roteiro. No início do projeto, a novelista chegou a questionar a sua participação, por não ser negra, sendo prontamente rebatida por Pitanga. "Como não é?! Você nasceu em Salvador e é filha de Sônia Dias (atriz que integrou o elenco de filmes importantes, especialmente produções marginais assinadas por Júlio Bressane). Você é negona!", defendeu o realizador, gerando risos na plateia presente ao Cine Praça.
O filme começa na África, durante um casamento entre Abayomé e Dassalu (Rocco Pitanga) que é interrompido por captores. Eles são mandados para o Brasil, vendidos para donos diferentes. Após longo tempo, o casal se reencontra e acaba participa da Revolta dos Malês, que envolveu mais de 600 negros escravizados, a maioria muçulmana e de origem nagô e haussá. "O termo “malê”, por sinal, é oriundo de “imalê”, na língua iorubá, e significa “muçulmano”. Dassalu era um dos oito líderes do movimento, ao lado de Ahuna, Licutan, Sule, Gustar, Calafete, Sanim e Dandará.
Trinta por cento das filmagens aconteceram em Maricá, cidade histórica do Rio de Janeiro. "Depois tive três semanas para fazer o restante no Recôncavo Baiano, um filme de época, e com chuva o tempo todo. Felizmente, não perdemos a qualidade da narrativa que a gente queria contar, porque o sonho não morre. Ele é tatuado na sua alma, o que nos deixa sempre de pé. Podem vir todos os ventos do mundo que não apagam quem eu sou. Se você tem a certeza que eu tive, a formação política e humana que eu tive, a formação amorosa que minha mãe me deu, vai fazer", exulta Pitanga.
"Por que eu fiz 'Malês'? Porque é uma história que o Brasil não conta. Até mesmo nós, negros, não conhecemos. A Samira, por exemplo, só foi entender sobre o Malês com o filme. Ela não tinha ouvido falar no interior de São Paulo. A Bahia é o maior griot (nome dado aos contadores de histórias das sociedades africanas) do país e lá tem muitas histórias que o Brasil ainda não conhece. 'Malês' não é o dono da verdade, mas sinaliza para várias histórias que não são conhecidas", observa Pitanga, já sob o olhar impaciente de Benedita, após 44 minutos de conversa. "Eu te amo, Benedita!", declarou.
(*) O repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Tiradentes