O Festival Internacional de Roterdã terminou no domingo com um prêmio para a animação mineira "A Marcha dos Girassóis", de Erick Ricco, que receberá 5.000 euros para serviços de pós-produção. É o primeiro longa-metragem do Estado feito totalmente em stop-motion - técnica usada em produções como "O Estranho Mundo de Jack" e "A Fuga das Galinhas". Ou melhor, "pode ser" o primeiro, já que o trabalho está paralisado, à espera dos R$ 3,5 milhões aprovados em março de 2024 pela Lei Paulo Gustavo (LPG).

"Estamos muito felizes em receber este prêmio. Mas já estávamos só de sermos selecionados para o CineMart (voltado para projetos em desenvolvimento), que é bem concorrido, com projetos do mundo inteiro querendo entrar aqui. Quem vem para cá com as obras ainda em produção tenta agregar parceiros. E é o que estamos fazendo", diz Ricco, com a voz rouca devido ao intenso frio da cidade holandesa. Mas ele não esconde a preocupação com a situação da LPG estadual, contestada na Justiça por um dos participantes na categoria.

O que era para ser uma conquista da animação mineira, que vem ganhando cada vez mais espaço no cenário nacional, com filmes como "Chef Jack: O Cozinheiro Aventureiro" e "Placa-Mãe" e a série "Cosmo, o Cosmonauta", acabou recebendo contornos de drama policial com a suspensão do pagamento de cerca de R$ 10 milhões, previstos pela subcategoria 5 do edital e que seriam destinados a três longas do formato, selecionados no primeiro semestre do ano passado. 

O diretor de "eHumans", Ricardo Targino, entrou, em abril do ano passado, com um mandado de segurança sobre a seleção, alegando que não se aplicou a regra de cotas, o que faria com que seu filme - sobre uma comunidade indígena - ocupasse uma das três vagas. Após uma liminar concedida pela Justiça, quando os recursos já estavam nas contas dos realizadores, agora os envolvidos aguardam um parecer do Ministério Público de Minas Gerais, solicitado pelo juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias.

A demora na resolução do imbróglio deixa todos os envolvidos insatisfeitos, já que as produções acabam sendo desmobilizadas, com profissionais contratados deixando o projeto. Além de Ricco e Targino, o realizador Jackson Abacatu também não vê a hora de o impasse ganhar um desfecho. Ele está à frente de "Treze Sonhos", terceiro colocado na seleção e que, havendo ganho de causa de Targino, perderia os recursos da lei de incentivo.

"A Marcha dos Girassóis" não corre esse risco, mas o adiamento da produção pode levar à perda de parceiros e até mesmo o posto de primeiro longa em stop-motion de Minas. "Em maio, a gente foi notificado para não usar o dinheiro e isso vem se arrastando desde então. A impressão que dá é que o processo não foi analisado de fato", lamenta, lembrando que o juiz responsável havia anunciado, em outubro, que em poucos dias daria a sentença.

"Agora, há duas semanas, um outro juiz pede para o Ministério Público se manifestar, até março, reabrindo o prazo. Parece, com isso, que estão empurrando o processo para frente e isso está atrapalhando muito a gente e também o setor da animação inteiro, porque os dois primeiros colocados já poderiam estar usando o dinheiro e empregando muita gente. Um longa de animação mobiliza uma quantidade grande de pessoas", observa Ricco.

Antes do pedido de parecer do Ministério Público, os representantes de Targino anexaram ofício ao processo chamando a atenção sobre a demora na apreciação do mérito, "causa grande prejuízo ao impetrante, que teve seu direito líquido e certo violado e aguarda a segurança jurisdicional para que a ilegalidade seja sanada". E lembra "que não há qualquer necessidade de produção de novas provas ou de dilação probatória".

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult), citada no processo, respondeu em nota que "a política pública do audiovisual em Minas Gerais é de responsabilidade da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), que trabalha em conjunto com a Secult. Diante disso, informamos que o Edital LPG 02/2023 está com o repasse de recursos paralisado em razão de decisão liminar".

Segunda a nota, "essa decisão foi impugnada pela Secult nos autos, com apresentação de argumentos técnicos e jurídicos visando sua cassação", ressaltando que, "atualmente, o processo aguarda parecer do Ministério Público". A reportagem também entrou em contato com as assessorias de comunicação do Ministério Público de Minas Gerais, que ainda não encaminhou as suas respostas sobre o processo.

Erick Ricco reclama da postura da Secretaria, "que deveria estar preocupada com a aplicação do dinheiro e do fomento da cultura e da animação, por ser um edital muito relevante". "Fizeram a defesa deles e não nos chamaram para uma conversa. A gente não sabe se o jurídico deles tentou uma acareação com o juiz para, pelo menos, fazer o Judiciário entender que têm dois projetos que não precisavam estar travados. A gente está no escuro".

"Um erro esse mandado ter sido concedido"

Desde o momento em que Ricardo Targino entrou com o mandado de segurança, Jackson Abacatu acionou um advogado para entrar no processo, por se sentir como a parte prejudicada. "Por estar em terceiro lugar e devido ao mandado, se ele tiver a vaga contemplada, eu perderia. Por isso busquei me resguardar o quanto antes. Demorou meses até o juiz aprovar a nossa entrada no processo", lamenta o realizador.

Ele observa que a questão já poderia ter sido resolvida, achando estranha a demora da Justiça para chegar a uma solução. "Um erro foi esse mandado ter sido concedido. Em nosso entendimento, as alegações são absurdas, porque está se aproveitando talvez de um parágrafo mal escrito no edital que permitiu que ele alegasse que a vaga seria dele, em relação às cotas, o que não existe na categoria específica", analisa.

"É algo muito sutil, específico, e acredito que, dentro do Judiciário, eles não têm tanto conhecimento do edital. Quem ler a instrução normativa  da Ancine, vai ficar claro que o que se está alegando no processo, ao nosso ver, é absurdo. Primeiramente, até achei que não iria durar este mandado. Aí concederam a liminar a favor deles e contratei um advogado, até pensando que isso poderia agilizar e dar peso", detalha.

Abacatu acha bizarro o fato de o impetrante não ser o proponente do projeto de "eHumans". "Ele não é da empresa proponente, não fazendo parte do quadro societário. Por que não foi a empresa que entrou com o mandado? Agora estamos nessa espera. O problema é que o Judiciário brasileiro tem essa morosidade. Cada ação demora meses, nos deixando refém dessa espera", salienta.

Para ele, a grande vantagem da Lei Paulo Gustavo era justamente possibilitar uma quantidade grande de postos de trabalho, "o que realmente foi acontecendo com outras categorias". Cada longa de animação, calcula Abacatu, gera cerca de 100 empregos. "O que era para ser uma ação emergencial, para incentivar e garantir trabalho para muita gente. Eu mesmo tive que me adaptar, porque estava preparado para começar a produção", afirma.

"Já havíamos feito todo um planejamento de produção. Como não é um projeto pequeno, não é o negócio que você fala que irá parar uma semana. É um projeto que iria durar quase dois anos", sublinha. "Treze Sonhos" foi escrito há dez anos, inspirado em sonhos reais do realizador. "Eles são apresentados como capítulos, sendo cada um animado por pessoas diferentes. Haverá uma quantidade diversa de técnicas de animação", adianta.

"A Secult tratou a cota como uma vaga qualquer"

Uma das razões para a confusão sobre a regra de cotas, de acordo com Ricardo Targino, remonta à época da criação do edital da Lei Paulo Gustavo, aprovada pelo Congresso Nacional em 2022. O governo vetou a lei, transformando-a em medida provisória, com os orçamentos sendo aplicados muito posteriormente. Decisão que foi questionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o Congresso derrubando o veto e retornando à proposta original.

Ele explica que entrou com o mandado, mesmo não sendo o proponente, porque a lei dos direitos autorais no Brasil confere ao diretor da obra audiovisual direitos patrimoniais e morais. "Essa legislação me permite questionar, em qualquer instância,  qualquer ato que seja praticado contra a obra. Apesar de sermos considerados um dos piores países do mundo para direitos do autor, ela nos garante questionar qualquer ato que repercuta em prejuízo do autor".

Outra razão é o fato de ser negro e, segundo ele, a Secult informou que, dentro da categoria de animação, não havia projeto de pessoas negras. "O edital atrelou às cotas a maioria do quadro societário da empresa. E a empresa que faz o filme não tinha essa maioria, apesar de o projeto ser de uma pessoa negra. Quem assume as responsabilidades sou eu. Você não pode desvincular o autor de sua obra em hipótese nenhuma", assevera.

Ele alerta que a Secult tratou a cota como uma vaga qualquer. "É preciso lembrar que cota é uma vaga reservada. A pessoa que pode sentar a b... nesta cadeira tem que ser comprovado que tem direito a estar no grupo. Quando falamos de ordem de classificação para cotas, não estamos falando de ampla concorrência. O item 3.4 do edital é claríssimo, dizendo que, quando não houver inscritos dentro de um grupo, determinada cota será preenchida de acordo com a ordem de classificação".

Desta forma, explica, uma vaga para cotas só pode ser revertida para ampla concorrência se não houver ninguém concorrendo a ela dentro de todos os grupos, englobando aí negros, mulheres, LGBTQIAPN+, deficientes e maiores de 65 anos. "Não é tolerável, havendo inscritos diversos grupos, das três propostas classificadas, nenhuma delas seja optante de cota de nenhum grupo. Se houvesse ali uma mulher, um deficiente ou de qualquer outro grupo, não haveria um mandado".

Targino observa que o Judiciário tem "ficado distante em relação a questões ligadas a concursos e editais, por achar que o poder tem independência, mas nesse caso aqui era gritante". O fato, sublinha, se torna ainda preocupante ao se verificar, após a aceitação da liminar, que a Secult descumpriu a ordem judicial, manteve o processo de habilitação e realizou os depósitos.

O cineasta salienta que não está brigando pela terceira vaga da categoria, mas, sim, por ser uma política de estímulo, a primeira vaga que deveria ser classificada seria a dos grupos. "É preciso dizer que, pela primeira vez no país, tivemos um sistema de reparação, colocado desde a origem, com o protagonismo de mulheres, negros, indígenas. Tudo isso está no entendimento geral de política de ação afirmativa", comenta.

Se for preciso, garante Targino, ele irá até o Supremo Tribunal Federal, "porque o que está em jogo é a política de ação afirmativa de uma sociedade que se estruturou com base em processos de escravidão e terá que fazer a reparação, já que é isso o que determina a democracia". Ainda que não seja a proposta dele a ficar com a vaga de cota, por algum motivo, "quem sentar nesta cadeira terá que ser destes grupos".

Necessidade de ouvir o Ministério Público

A assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Geraid salienta que o processo está com a tramitação regular. Em nota, explica que, "em 2 de Abril de 2024, o autor do processo ( concorrente no edital pela Lei Paulo Gustavo na categoria audiovisual) ingressou com o Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, contra  o Secretário Estadual de Cultura, a Subsecretária de Cultura de Minas Gerais e a Secretária Adjunta do Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais.

Como pedido liminar/antecipatório, requereu a suspensão dos repasses aos 3 classificados  e a reclassificação da proposta de autoria dele para ocupar vaga reservada por cota, reserva que alegou não ter sido contemplada, e a consequente habilitação e demais trâmites necessários para repasse financeiro previsto.

Em 16 de abril, decisão do desembargador Pedro Bittencourt Marcondes indeferiu a segurança em relação ao Secretário de Cultura e consequentemente declarou incompetência da 2ª Instância, determinando a redistribuição para a 1ª instância da capital.

Em 23 de Abril de 2024, a juíza  Maria de Lourdes Tonucci Cerqueira, em decisão pela  1ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, analisou o pedido liminar e decidiu deferir “parcialmente” o pedido, para determinar a suspensão da habilitação, assinatura de termos, empenho e liquidação dos três repasses previstos na Subcategoria 5 – 'até que as autoridades coatoras prestem esclarecimento sobre a classificação e a reserva de vagas prevista no edital'.

Em 4 de Maio de 2024, a advogada do autor pediu a adição de novos documentos para embasar o pedido inicial e reiterou os pedidos do Mandado de Segurança.

Em 9 de Maio, o terceiro classificado, requereu seu ingresso no processo como interessado, tendo em vista ser possivelmente afetado pelo resultado da ação judicial.

Entre Maio e Novembro de 2024, ocorreram várias manifestações no processo: sobre o ingresso do litisconsorte interessado, informações da subsecretaria e secretaria adjunta de cultura, contestação da parte etc. Em 12 de dezembro manifestação da parte  requerendo que seja dada prioridade ao processo.

Em 21 de janeiro, o juiz Rogério Santos Araújo Abreu, em substituição na 1ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, observou que uma exigência legal prevista no artigo 12 da Lei nº 12.016/09, a intimação para que fosse ouvido o Ministério Público sobre o pedido de liminar no Mandado de Segurança, não fora cumprida até aquela data, e por isso determinou a citação do Ministério Público."