“Modernizar o passado é uma evolução musical”. A sentença reflete uma máxima que permeia toda uma obra revolucionária. É o primeiro verso que escutamos em “Da Lama ao Caos”, álbum que, de abril de 1994 em diante, transformaria para sempre os rumos da música brasileira. Estreia de Chico Science & Nação Zumbi no mercado fonográfico, o disco não só foi um dos responsáveis por inaugurar o ideário manguebeat – simbolizado por uma antena parabólica fincada na lama –, como também escancarou portas para uma nova cena musical e artística no Brasil, que ecoa até hoje, mais de 30 anos depois. Caminho sem volta.
“Foi um grito louco, com muita gente com fome e sede de cultura”, sentencia Jurge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi, contextualizando o cenário de uma juventude ávida por arte nos guetos do Recife no fim dos anos 1980 e início dos 1990.
“Éramos B-boys, ligados no hip-hop, na sonoridade do soul e também nas batidas africanas. Na cultura do gueto, isso é muito forte, transforma pelo centro. Éramos jovens com poucas ferramentas, mas com muitas ideias”, relembra o músico, àquela época já alimentado de groove, rock, batuques e afrofuturismo – assim como o irmão, Chico Science, alcunha artística de Francisco de Assis França, que nos deixou precocemente, em 1997, vítima de um acidente de carro. Chico tinha 30 anos.
Pois agora, celebrando as três décadas da icônica fusão sonora de ritmos tradicionais pernambucanos com referências globais, a Nação Zumbi desembarca em Belo Horizonte para duas apresentações de “Da Lama ao Caos” na íntegra, faixa a faixa. Os shows, ambos com ingressos já esgotados, acontecem nesta sexta (14) e sábado (15) no palco da Autêntica, com a participação especial de Maciel Salú, rabequeiro, cantor, compositor, mestre de maracatu-rural, militante das tradições populares e filho de Mestre Salustiano (1945-2008), um dos nomes mais expressivos da cultura popular de Pernambuco.
Antena ligada
Ao revisitar os primórdios da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe fala de encontros. E logo num espaço significativo de arte e resistência em Pernambuco, localizado entre as irmãs Recife e Olinda. “O Chico conheceu o Gilmar (Bola 8, ex-integrante da Nação Zumbi) na comunidade Chão de Estrelas, um local muito bacana de efervescência musical”, conta o músico, trazendo à tona o encontro com percussionistas da Lamento Negro, grupo embrionário da Nação Zumbi.
Para Jorge, o período é significativo não só na sonoridade ali absorvida, mas também de maturação intelectual, lutas e reflexões cidadãs e aquela fome pelo novo. “Começamos a sacar também o maracatu, o coco, a embolada. Na época, quando se falava em música do Nordeste, o pensamento era na Bahia. E também começamos a entender mais sobre a teoria do caos, o pensamento de Josué de Castro, as mazelas do Recife – considerada a quarta pior cidade do mundo, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)”, assinala Jorge, fazendo referência também ao pensador, médico, escritor e professor pernambucano Josué de Castro (1908-1973), um dos maiores ativistas do combate à fome que o país teve, cujo pensamento figura recorrentemente nas composições de Chico Science & Nação Zumbi (“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”, afirma um verso de “Da Lama ao Caos”, a faixa-título do primogênito da banda).
Dali em diante, se faz história, faixa a faixa, revelando as contradições sociais de Pernambuco – e do Brasil –, a experimentação visceral da banda e a oportunidade para todos, fora daquela realidade, de conhecer algo novo e que, passados 30 anos, segue mais atual do que nunca.
“A essência é que (o disco) é à frente de seu tempo, um trabalho verdadeiro. Vínhamos de uma época que não havia a rede. Já tinha o afrofuturismo inserido – ainda que tenha ficado mais latente em ‘Afrociberdelia’ (o álbum seguinte do grupo, o último com Chico Science à frente dos vocais)”, afiança Jorge, destacando o “estranhamento” que a sonoridade causou em Liminha, produtor do disco, ao perceber que na banda daqueles caras não havia bateria, somente alfaias, tambores e percussões.
Pois de “Monólogo ao Pé do Ouvido” – a vinheta inicial do disco que traz o verso que abre esta reportagem –, que faz um prelúdio de “Banditismo por uma Questão de Classe”, passando pela embolada “Rios, Pontes e Overdrives” e sua observação das contradições recifenses; as denúncias ainda vigentes de “A Cidade” (“o de cima sobe e o de baixo desce”); a empolgante filosofia de “A Praieira” (“uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”); a indignação pelas injustiças sociais da carro-chefe “Da Lama ao Caos” (“um homem roubado nunca se engana”); ao afrociberdelismo quântico de “Coco Dub”, as 14 canções de “Da Lama ao Caos” convidam para um permanente diálogo de um país injusto e contraditório, mas também culturalmente poderoso, criativo e antenado.
“Pulamos pequenos muros e atravessamos fronteiras”, sintetiza Jorge Du Peixe, consciente das dificuldades de ontem e de hoje de um Brasil diverso e desigual, mas que tem esperança também. “A gente tem que estar ligado, saber usar o poder da voz”, crava.
E nesse diálogo que atravessa gerações, “Da Lama ao Caos”, para além do didatismo de seus temas atuais e urgentes, também é um convite para dançar e desfrutar, assim como o “Monólogo ao Pé do Ouvido” também ensina: “basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”.