Grada Kilomba está de volta. Pelo segundo ano consecutivo, a artista portuguesa baseada em Berlim, cujo trabalho aborda temas como memória, trauma e pós-colonialismo, abre os trabalhos da temporada de atividades e atrações do Inhotim, onde expõe, desde abril do ano passado, a obra “O Barco | The Boat”, que já circula o mundo desde sua criação, em 2021, chegando ao Brasil, pela primeira vez, justamente em 2024, quando foi apresentada no museu, o maior a céu aberto da América Latina.
Neste sábado (8) e domingo (9), ela retorna ao instituto, onde conduz, pela segunda vez, uma performance, chamada de "Ato II", que integra a obra. Afinal, “O Barco”, como outras obras de Grada Kilomba, tem caráter interdisciplinar, combinado, a um só tempo, uma instalação escultórica em larga escala, que comporta um poema, sendo ativada a partir de apresentações que combinam percussão, canto e dança.
A instalação, em exibição na Galeria Galpão até 2026, se estende por mais de 220 m², com 134 blocos de madeira queimada que remetem à silhueta do fundo de uma embarcação. O trabalho, todo ele realizado no próprio Inhotim, é ancorado por 18 blocos sobre os quais repousa um poema dourado da artista, traduzido para as línguas iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe da Síria.
"O Barco" remonta aos porões dos navios negreiros do século XVII. Foto: Brendon Campos/Divulgação
“Toda arquitetura do barco é muito minuciosa, pensando em como corpos africanos eram acomodados nesses navios de tráfico de pessoas escravizadas – estamos falando de crianças, mulheres e homens –, que tinham espaço máximo de 20 cm (entre o corpo e o teto, considerando que essas pessoas eram transportadas deitadas no subsolo dos navios)”, explica a artista de ascendência são-tomense e angolana, contestando as narrativas oficiais, que associam, de forma quase infantil, as grandes embarcações do século XVII a uma ideia de glória e triunfo, ligadas à noção de “descobrimento”.
Encarada como uma obra viva por Grada Kilomba, “O Barco” é ativado por meio de performances dirigida por sua criadora. A primeira intervenção marcou a chegada da instalação ao Inhotim, e, claro, ao Brasil. Na ocasião, a apresentação contou com um ensemble de cantores, bailarinos clássicos e percussionistas vindos de Lisboa, além de alguns brasileiros. Desta vez, com a ativação realizada neste fim de semana, o corpo performático é formado por sete artistas europeus e 13 brasileiros, vindos de Belo Horizonte, Brumadinho, Justinópolis, quilombo Marinhos, além de outras cidades e territórios, selecionados por meio de casting, definido pela própria artista.
Essa mudança, claro, tem efeito na forma como a performance se dá. Uma das transformações perceptíveis é uma percussão com mais batuque, com um certo acento brasileiro. Além, claro, do discurso de um texto que soa mais perto, sem o sotaque lusitano. Detalhes que, na verdade, pouco interessam à artista. “O que trazemos aqui é um vocabulário completamente diferente, o diaspórico, que ultrapassa essa construção artificial de nação. O que vimos foi como corpos humanos e a histórica ultrapassam as construções e definições políticas que foram feitas para separar pessoas”, tangencia.
“O que me fascina é que tive quatro dias para trazer a performance para pessoas que eu nunca vi, que nunca ouvi suas vozes pessoalmente, que não vi como se movimentam, como é seu toque. E no final percebemos que o grande exercício é realmente construir essa humanidade, essa massa, esse organismo. Eu vi como os corpos fluem, como a arte permite que os corpos abandonem muitas dessas construções que são, muitas vezes, violentas, e como eles se encontram outra vez, porque a memória está registrada no meu corpo, no meu movimento, na minha forma”, crava. O resultado, apesar do pouco tempo, deixou Grada Kilomba satisfeita. Muito satisfeita. “Eu acho que sou a artista mais feliz do mundo”, comenta.
Reconexão
Para ela, acima de tudo, o que interessa é justamente a ideia de um reencontro entre pessoas de povos que foram separados e que, agora, voltam a se conectar, conseguindo, em poucos dias, se identificar a partir de um mesmo registro que, nas palavras dela, está tatuado na pele das pessoas em diáspora. Tema, aliás, sobre o qual versa a própria performance, que, em 60 minutos, conta com um coral com 15 integrantes e uma dupla de bailarinos, além de um trio de percussionista.
Performance instiga o público com as memórias e dores de homens e mulheres escravizados. Foto: Daniela Paoliello / Divulgação
Durante a ativação, os performers interagem com a estrutura do “barco”, se posicionamento ora em uma ponta, ora em outra, em uma coreografia que remete à ideia de separação forçada, fuga, acolhimento, reencontro e, finalmente, à noção de um rito fúnebre, uma despedida digna àqueles que tiveram o direito à humanidade negado até na morte. Tudo, como é do feitio de Grada Kilomba, emoldurado em uma apresentação poética, que guia o público por quase um transe, ditando a rítmica respiratória. Nos momentos finais, a cena faz lembrar o descoroamento dos reis e rainhas do Congado nas cerimônias de despedida.
Vale registrar, essa maciça presença brasileira na performance responde a um manifesto desejo da artista: “Me interessava trazer uma obra de arte que dialogasse com o território, com as pessoas do território, sua terra, corpo, vozes, movimento. Então, foi muito importante que a obra viesse e tivesse essa presença contínua. E isso é muito importante para minha prática artística, pois quero trabalhar com uma obra viva, que respira”, argumenta ela, que tem uma relação antiga com o Brasil: em 2016, Grada Kilomba integrou a 32ª edição da Bienal de São Paulo, onde apresentou “Illusions Vol. I, Narcissus and Echo”, seu primeiro trabalho comissionado. Em 2019, apresentou na Pinacoteca de São Paulo a individual “Desobediências Poéticas”, com curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli. Naquele mesmo ano, seu livro “Memórias da Plantação: Episódios do racismo cotidiano” (Editora Cobogó) alcançou a marca de mais vendido do Festival Literário Internacional de Paraty (Flip). Por fim, mais recentemente, ela voltou a colaborar com a Bienal de São Paulo, em 2023, desta vez como curadora, ao lado de Diane Lima, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.