Uma criança brinca de soprar bolas de sabão. A cena não é incomum em espaços públicos que reúnem famílias nas grandes ou pequenas cidades. Em Belo Horizonte, um desses destinos é a praça da Liberdade, que atrai, entre moradores e turistas, muitos meninos e meninas enfeitiçados pela beleza e leveza dessas pequenas bolhas de ar, que voam até estourar – de preferência na pele, imprimindo um discreto frescor, só perceptível aos mais encantados.
Essa brincadeira, agora, ocupa os jardins laterais do imponente prédio que sedia a unidade belo-horizontina do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB BH), convidando quem passa a conhecer o trabalho do escultor paulista Flávio Cerqueira, que apresenta no espaço, a partir desta quarta-feira (12), a sua primeira mostra retrospectiva, que repassa seus 15 anos de carreira.
A exposição reúne cerca de 40 obras de um trabalho capaz de, entre outras coisas, subverter a natureza da matéria, imprimindo uma ideia de maleabilidade ao que é rígido, e de combinar significados ambivalentes em uma mesma peça.
Nesse sentido, a obra da criança que faz bolas de sabão, uma das três esculturas apresentadas na área externa do centro cultural, é alegórica da capacidade do artista de imprimir a qualidade do movimento à solidez imóvel do bronze, usado na grande maioria das esculturas expostas em “Flávio Cerqueira – Um Escultor de Significados”, que, com curadoria da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, segue em cartaz até 2 de junho.
Ocorre que as obras do artista – algumas de dimensões humanas e outras em tamanho reduzido – geralmente comunicam uma ideia de ação, como um frame de um filme, como uma cena que, congelada no tempo, flui, leve. Uma leveza que Cerqueira deseja que, para além da obra em si, se estenda ao próprio CCBB BH, emprestando ludicidade à opulência da edificação.
“Eu venho da periferia de Guarulhos. Para mim, até hoje, mesmo com 15 anos circulando o meio artístico, alguns desses espaços ainda parecem repelentes. São lugares em que gente que veio de onde vim não se sente bem-vinda. Então, o que quero é fazer parte de um movimento que segue no caminho oposto: quero que minha arte seja popular e convide as pessoas a entrar nesses espaços. E, por isso, me preocupei em trazer essas peças para fora e começar a exposição já na área externa”, comenta o artista, celebrando que, durante a montagem da mostra, já pôde ver a estratégia surtir efeito quando viu a curiosidade de um grupo de senhoras ser despertada por aquelas imagens.
Montagem
Escultor de mãos hábeis e raciocínio rápido, Cerqueira transmite a sensação de movimento também na forma como as peças são dispostas na exposição, que ocupa o hall e duas galerias do térreo, além dos espaços de circulação internos e externos do prédio histórico. “Trabalhei por alguns anos como montador de exposições. Me guiei por essa experiência para propor que a mostra tivesse a forma de uma trajetória, de um passeio, com uma obra nosso olhar à outra espontaneamente”, explica.
A bagagem como montador ajuda a explicar, mas não é a única razão pela qual os trabalhos de Cerqueira articulam, com o que é estático, a ideia de ação contínua. Entram em conta também as tantas matrizes de inspiração do artista, que, apesar de trabalhar sobretudo com a escultura, busca referências em outras artes, incluindo aquelas pautadas pelo movimento, como o cinema, além de manter seu olhar atento e seus ouvidos abertos ao mundo à sua volta.
“Eu gosto de mostrar meus trabalhos para as pessoas da minha quebrada, para a minha mãe e ouvir o que elas acham daquilo. Esse é o meu termômetro. Se a pessoa viajar naquilo, é porque deu certo”, relata. “Sou um artista visual e acho que meu trabalho tem que falar por si. Se eu tiver que colocar uma placa explicativa ao lado de uma obra explicando o que eu queria dizer, é porque deu errado”, completa.
Matéria-prima
Lilia Schwarcz e Flávio Cerqueira começaram a se corresponder quando a historiadora lançou o livro “Brasil: uma biografia”, de 2015, em coautoria com a pesquisadora mineira Heloisa Starling, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Ele (Cerqueira) me mandou um e-mail achando que eu não ia responder, me convidado para uma exposição. Eu fui e fiquei arrebatada por uma obra, ‘Amnésia’, que ele dizia que era sobre esquecimento e eu dizia que não, porque a tinta não ficava na pele, não cobria ele todo”, menciona, fazendo menção a uma escultura em cobre em que um menino negro vira uma lata de tinta branca sobre seu corpo.
A partir do debate, passaram a se falar mais e mais, até que foi convidada a ser curadora da mostra retrospectiva, missão que aceitou sem titubear. “Para mim, está sendo uma honra”, garante, enquanto comemora o sucesso da temporada de “Flávio Cerqueira – Um Escultor de Significados” em São Paulo. “Foi muito além das nossas expectativas”, reconhece.
Atenta aos detalhes de cada trabalho – os olhos fechados de um, os dedos que se sobrepõe acolá –, Lilia chama atenção para a maneira como Cerqueira subverte o significado atribuído à principal matéria-prima usada nas obras, o cobre, geralmente associado à representação de figuras de poder. “Ele usa esse material para representar cenas do cotidiano, cenas de pessoas comuns, fazendo um tipo de escultura figurativa que não vai representar um indivíduo apenas”, ressalta, assinalando ainda para a presença de elementos do contemporâneo – como peças de vestuário ou cortes de cabelo – em suas obras.
Esse conjunto de elementos, aponta a curadora, contribuem para um processo de identificação com o público, convidado a se ver naqueles trabalhos e, a partir de então, construir significados. “Nós, como espectadores, vamos atribuindo sentido a esses trabalhos, de modo que nos tornamos, em certa medida, coautores”, avalia.
Ambivalências
Lilia ainda ressalta a ambivalência presente nas esculturas. Um objeto recorrente é o livro, uma representação da educação e da busca por conhecimento, que surge como um escudo contra a violência e plataforma para a soberania, mas também como um objeto pesado, que pode oprimir.
A própria liberdade é saudada por ele em seus paradoxos: há, por exemplo, a imagem de uma menina que, presa pelos cabelos a balões, levita, aparentemente livre do peso do mundo, mas lidando sempre com o desconforto de ter a trança puxada para cima. “E dói porque, às vezes, para voar, você tem que se descolar de alguma, um paradigma, um dogma social, e isso é custoso e pode mesmo doer”, reflete Cerqueira, que reconhece que questões sociais, raciais e de gênero são assinaladas nos seus trabalhos, mas nunca de maneira óbvia ou panfletária, como costuma frisar.
Núcleos
Nas áreas de circulação internas e externas e nas galerias do térreo do CCBB BH, a mostra retrospectiva “Flávio Cerqueira – Um Escultor de Significados” é divida em cinco núcleos, com trabalhos distribuídos por uma série de critérios, não obedecendo uma simples ordem cronológica.
“Labirinto da memória”, por exemplo, é da fase mais autobiográfica do artista. Nesta sala estão obras feitas no resistente bronze, mas que aparentam ser da frágil porcelana, caso de “Ninguém nunca esquece” (2014), “Pretexto para te encontrar” (2013) e “Iceberg” (2012) – sendo a última considerada por ele como seu trabalho mais pessoal, onde revisita sua reação, quando tinha 11 anos, diante da notícia da morte de seu pai.
Já em “Um caminho sem volta” a educação é tematizada. Neste núcleo estão trabalhos feitos em escala humana, caso de “Foi assim que me ensinaram” (2011), única peça em porcelana de toda exposição, “Eu te disse” (2016), “Se precisar, eu conto outra vez” (2016) e “No meu céu ainda brilham estrelas” (2023) – na mais recente, um livro surge perfurado por 27 balas, representando os 26 Estados brasileiros e o Distrito Federal.
Já “Histórias – as minhas histórias, as nossas…” reúne o maior número de esculturas, entre elas estão “Amnésia” (2015), que foi o ponto de partida para as trocas com Lilia Schwarcz, e “Tião” (2017), em que reimagina a figura de São Sebastião: se o mártir católico é representado cravejado por flechas, de mãos atadas, na obra dele um menino negro surge em postura semelhante, mas alvejado por balas. Há um detalhe especialmente curioso na escolha: se o menino pode ser interpretado como alvo da violência estatal, o santo que mimetiza é justamente patrono das forças de segurança do Estado.
Outras duas obras deste núcleo carregadas de polivalência são “Onde tudo acaba em mim” (2021) e “Desenho Cego” (2024). A primeira pode ser vista como uma brincadeira de caça ao tesouro: há elementos como a bússola, a lanterna e o “X”, que aparece marcado nas costas do menino esculpido, transmitindo também a ideia de alvo. Já a segunda reflete sobre o ato de esculpir, permitindo uma leitura que olha para a capacidade de extrair da própria experiência, da própria carne, a matéria-prima do seu trabalho, expondo-se por fora e por dentro – e, para isso, realizando um exercício de quase automutilação.
Bastidores e circulação
Nas galerias, o percurso é finalizado por “O processo é lento”, em que Cerqueira expõe os bastidores de suas criações, levando para o lugar moldes de silicone, modelos de escultura em massa de modelar, utensílios e ferramentas usadas em seu ateliê, além de vídeos que registram seu processo de criação. “Aqui é a sala meio ‘Mister M’, onde revelo como a mágica acontece”, brinca.
Já nas áreas de circulação, internas e externas, está “O jardim das utopias”, núcleo que apresenta trabalhos escultóricos que interagem com outros elementos: há, por exemplo, um menino com um regador sobre um espelho d’água em que, sobre a cabeça, cresce uma jabuticabeira. Um dos destaques é “Uma palavra que não seja esperar”, obra feita durante uma residência no Kansas City Art Institute, no Missouri, Estados Unidos, em 2018. Nela, Cerqueira se inspira na história de Ruby Bridges, a primeira criança negra, nos anos 1960, a estudar em uma escola anteriormente destinada exclusivamente a brancos. Na representação, ele recorre também a suas próprias memórias de mulheres carregando baldes de água na cabeça, que, na peça, são substituídos por volumes de livros.
SERVIÇO:
O quê. Mostra retrospectiva “Flávio Cerqueira – Um Escultor de Significados”
Quando. A partir desta quarta-feira (12); até 2 de junho. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h
Onde. CCBB BH (praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. Gratuito. Ingressos disponíveis nas bilheterias físicas do centro cultural e no site ccbb.com.br/bh