A cena é clássica. Sobre um fundo preto, surge a imagem em preto e branco de uma mulher elegante, com olhar firme, ao lado de uma frase de impacto. No fim da sentença, a assinatura: Clarice Lispector. É comum ver a imagem ao checar o feed do Facebook ou nos stories do Instagram, postadas por quem conhece ou não o trabalho da escritora.
No TikTok, se avolumam vídeos de usuários que recomendam obras de Clarice ou trechos de uma famosa entrevista com a escritora, concedida em 1977, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura.
Artistas de fora também se renderam à escritora: Lorde revelou que se inspirou na ucraniana-brasileira para compor as faixas do álbum “Virgin”; Olívia Rodrigo contou que “A Hora da Estrela” é seu livro de cabeceira; e Cate Blanchett disse ter extraído lições importantes da obra de Clarice.
Em uma rápida pesquisa no Google, é fácil encontrar à venda canecas, camisetas, bolsas de pano, ímãs e botons estampados com fragmentos de livros da artista. “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” talvez seja o trecho mais costumeiro.
Esses exemplos dão conta do recente “fenômeno Clarice”, que extrapola o universo literário e alcança a cultura pop e o consumo cotidiano. Nas últimas décadas, a autora tem sido redescoberta por novas gerações, que encontram em seus escritos uma linguagem introspectiva, poética e profundamente atual.
Professora de literatura do programa de pós e graduação da PUC Minas, Márcia Morais avalia que as características da obra de Clarice Lispector nunca fizeram tanto sentido quanto agora.
“Clarice fala de questões existenciais, presentes desde que o mundo é mundo. No entanto, hoje estão mais correntes, circulantes. Talvez depois da Covid-19, em que todos precisaram estar confinados, as pessoas voltaram mais a si, e o que ela disse acabou tendo mais projeção”, analisa a professora, que ministrou disciplina sobre o feminino e a maternidade na obra da autora.
A verdade é que o início da produção de Clarice Lispector (seu primeiro romance foi “Perto do Coração Selvagem”, de 1943) não foi bem recebido pela crítica. “Desde o primeiro momento, os escritos de Clarice causavam algum estranhamento. É uma literatura sofisticada que levanta muitas problematizações. Então, ela não foi muito bem acolhida”, indica.
Até que Antônio Cândido, um dos maiores críticos literários brasileiros, colocou atenção ao que a escritora dizia. “Ele falava que havia algo de muito especial nos escritos de Clarice, porque ela não deixava se levar por instituições, mas seguia seus impulsos e pulsões, sem se colocar censura ou filtro, e essa característica resultava em textos muito instigantes. A partir dos anos 60 e 70, seus escritos começam a se firmar, e, hoje, vivem o seu auge”, identifica.
Em sua obra, Clarice também empregou uma importante dimensão feminina, “não no sentido de levantar bandeiras, mas de marcar o lugar da mulher na literatura”. “Estamos vivendo um momento em que as questões do feminino estão em destaque, como se vê com autoras como Conceição Evaristo, muito aplaudidas pelo público leitor”, indica.
Outro aspecto marcante é que a escrita de Clarice não se propõe a simplesmente contar uma história. “Ela é sempre instigante. Mesmo quando há um enredo, é carregado de uma inquietação constante. Essa incerteza, aliás, é algo que está muito presente hoje. Vivemos tempos em que tudo antes parecia definido, e agora a única certeza é justamente a ascensão da dúvida”, aponta.
Escritora e um dos curadores da exposição “Constelação Clarice”, Veronica Stigger analisa ainda que, “na literatura de Clarice Lispector, tão importante quanto o que ela inventa é o que ela pensa.” Ou seja, “não há, em seus textos, fabulação sem filosofia.” “Sua escrita é, portanto, reflexiva, no sentido de que é uma escrita que se constitui como um pensamento e um pensamento que se pensa – e que toma consciência do que pensa – por meio da ficção”, ressalta.
Veronica identifica ainda que Clarice sempre empregou “uma profunda atenção à linguagem, à materialidade da língua, uma característica que é usualmente associada à poesia.”
‘Parece que Clarice me entende’
Ao ler Clarice Lispector, a sensação é que a escritora nunca teve medo de lançar um olhar profundo sobre si mesma – e, assim também, sobre o que há de mais íntimo em cada ser humano. “Ela vai ao cerne da condição humana e chega em lugares cujas questões são mais conflituosas. Ela não tem vergonha nenhuma de tocar no ponto nevrálgico que sequer sabemos identificar. Mas é muito importante quando existe alguém que consegue nomear isso para nós mesmos”, analisa a professora de literatura do programa de pós e graduação da PUC Minas, Márcia Morais.
Sua avaliação vai ao encontro do que pensa a atriz Isabela Paes, uma das diretoras de “Prazer”, espetáculo da Cia. Luna Lunera, inspirado na obra da escritora, que tem como ponto de partida fragmento do livro “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, em que um dos personagens diz que “uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.”
“Já tinha lido e relido o trecho inúmeras vezes. E, a cada volta, era como se aprendesse algo novo. Parece que a Clarice me entende, quase como o contrário da literatura, em que nós lemos um livro para entendê-lo”, pensa Isabela.
Na montagem, o grupo busca apresentar mais os estados da alma em detrimento de uma sequência típica de acontecimentos, característica fundamental da obra clariciana. “É difícil colocar isso em cena, e, por isso, o espetáculo transita por várias linguagens artísticas e é extremamente performático. Uma forma de tentar nomear o indivisível e percorrer caminhos que não existem”, sintetiza.