Quando começava a borbulhar, a dor sumia. Para curar as fortes enxaquecas da criança, a benzedeira Dona Jovelina, conhecida também como “vó preta”, lançava mão de rezas e de um frasco de água sobre a testa, num ritual “mágico”, descreve Bruno H Castro, ao explicar as origens do livro que ele acaba de colocar na praça, que não deixa de prestar homenagem a uma das protagonistas da trama.
Segundo Castro, “A Benzedeira” é a “bíblia em cordel” de seu primeiro longa-metragem de animação. “Ele surgiu da necessidade de continuar trabalhando em cinema, para que eu pudesse ir atrás de dinheiro para fazer arte”, pontua. Ao passar boa parte da infância ao lado de Dona Jovelina, o escritor paulista, natural da cidade de Barbosa, criou uma relação de amor e amizade com a futura personagem do livro.
“Aprendi muito sobre fé e fantasia com Dona Jovelina, ela me contava muitas histórias e eu via muita coisa no mínimo curiosa lá nos rituais na casinha dela. Ainda criança, eu gostava de ajudar a fazer os chás, aprendia as rezas, tomava café da tarde com alguma frequência depois da escola, escutava tudo e adorava conversar com ela por horas, mesmo novo, e lembro que escutava Dona Jovelina dizer que, um dia, todo mundo ia ouvir eu contar nossas histórias, parecia uma profecia. E isso me marcou, senti que eu tinha que cumprir”, admite.
Diretor e roteirista, Castro também aproveitou a oportunidade para começar a levar à luz do público os textos que escreve. “É meu laboratório, meu teste, estou entendendo a minha voz literária conversando textualmente com a memória de Dona Jovelina. A ideia percorreu esse caminho…”, diz.
Terceira margem
Nessa encruzilhada, ele se deparou com a obra de Guimarães Rosa, “que se tornou uma espécie de guru”. “É alguém para quem por vezes até rezo, chamo, medito antes de escrever, não sei o que é, é uma coisa meio maldita talvez que me faz ter vontade de ser escritor e de escrever de forma livre e experimental”, conta Castro. A “literatura sertaneja” do autor de “Grande Sertão: Veredas” fez com que o entrevistado “reconhecesse na arte a própria história”, e, pela primeira vez, “visse beleza” em seu passado.
“Na adolescência, tive um processo de negação de tudo o que fosse ligado ao interior, eu queria sair logo de Barbosa para vir morar em São Paulo, daí não conseguia admirar mais a vida no campo. Mas quando li a força filosófica, poética e entendi a potência narrativa presente, sobretudo, nas pessoas descritas por Guimarães Rosa, me lembrei de Dona Jovelina, e me reconectei à minha história”, observa Castro.
O passo seguinte foi entrelaçar as peças. “A literatura de Rosa também é influência para a trama de ‘A Benzedeira’, uma vez que o Poeta, que é ouvinte de Dona Jovelina e escritor da história que está vivendo, é fã de Guimarães Rosa e realizou uma expedição, em 1964, na região de Cordisburgo para coletar histórias, assim como o autor mineiro realizava”, revela.
A diferença é que o referido Poeta, “traz uma cicatriz no rosto, como resultado do final trágico da experiência artística”, o qual só é revelado ao leitor que alcançar o final do cordel. Todo esse périplo imaginativo começou para Castro em 2015, ao assistir uma peça no Teatro Oficina e compreender, no ato, as intersecções entre “Guimarães Rosa, Dona Jovelina, fé, filosofia, cinema e literatura…”.
Brasilidade
A opção pelo cordel atendeu ao desejo de abordar “uma brasilidade crua”, a partir de uma pesquisa que demandou dez anos de dedicação. “Dona Jovelina sempre conta sua história pela perspectiva da fé, mas uma fé livre, e isso representa a relação ‘ecumênica’ que nosso país tem com as religiões, por isso a narrativa está cheia de pequenas simbologias tipicamente brasileiras, como uma santa de barro queimado encontrada numa pescaria, além de outras minitramas de fé de matrizes africanas e originárias”, salienta Castro, que, ao se referir ao Poeta, o tece com as cores de um “escritor que vive no mundo da literatura e já não distingue a arte da realidade”.
O enredo acompanha a dupla numa verdadeira jornada pelo Brasil, que se inicia numa senzala na imperial cidade de Ouro Preto e chega à coroação de uma festa de Reinado do Congo, o que só aguçou o “fascínio” de Castro pela literatura de cordel.
“Gosto da oralidade, da poesia falada, do poema cantado e transcrito pro papel, dessa crueza, da arte gravada, dessa humanidade presente no cordel. O Brasil tem uma raiz oral muito forte, é a base da nossa formação linguística, social. Acho bonita essa poesia que o cordel traz de ser um guardião de narrativas ao longo do tempo. Ele é fácil de passar adiante, de levar junto, de disseminar, de democratizar, além de ser esteticamente lindo!”, enaltece o escritor.
Outro fator essencial para a narrativa reside na questão da escuta. “Sinto que hoje as pessoas quase não se escutam mais, e o Poeta, quando escuta Dona Jovelina com atenção, numa escuta ativa, ele finalmente consegue criar a obra que tanto queria, que era escrever o seu primeiro livro”, declara Castro, que evita ser assertivo quando indagado sobre “sua identificação” com o Poeta.
Loucura
“O Poeta é uma performance artística, literária, cinematográfica. Sou eu me experimentando, medindo minha coragem, saindo do ninho como artista, mostrando meu texto, mas criando uma performance para isso. Ainda não sou eu, pois, na verdade, é o Poeta”, diferencia. Entre as principais referências do projeto, ele cita o disco “Minas”, de Milton Nascimento, e a pintora Maria Auxiliadora, cuja obra, exposta no Museu de Arte de São Paulo (Masp), lhe deu o caminho das pedras.
“Ela me fez ver que era possível concretizar o sonho de fazer uma animação sobre a Dona Jovelina com um traço tão humano, vivo, com pé no chão”, exalta. Castro, que mantém em sua mesa de cabeceira poemas de Cecília Meireles e o clássico “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, é direto ao explicar o seu modo de concretizar o lançamento.
“Criei o financiamento coletivo para pagar o início da pré-produção do longa-metragem de animação porque cansei de esperar e essa foi minha forma de buscar investimento e de trabalhar. Uma amiga até me perguntou: ‘Sério que você vai fazer isso? Vender livro pra pagar filme? Quem lê no Brasil?’. Fiquei com isso na cabeça e comprei a ‘briga’, decidi vender literatura de cordel para bancar um filme de animação. É meio loucura, eu sei, mas viver pede loucura, uma loucura boa agora, eu precisava movimentar, criar, fazer aquilo que eu acredito. Essa história precisava vir pro mundo agora, você precisa conhecer essa história agora, então aceitei e estou deixando fluir”, finaliza Castro, cheio de planos, como uma vindoura animação com a atriz Marisa Orth.
Serviço
O livro pode ser adquirido pelas redes sociais, no Instagram @abenzedeirafilme