Nos últimos anos, um novo cargo tem despontado nos sets de filmagens. Trata-se da coordenação de intimidade, exercida por profissionais contratados para acompanhar de perto cenas que podem gerar certo desconforto para os atores, como as de nudez, as de sexo ou mesmo as de um parto.
Esse tipo de trabalho ganhou força no exterior, mas é cada vez mais comum observar tal atuação também em produções nacionais, sejam elas novelas, séries ou filmes.
Embora as primeiras pesquisas sobre a atuação desses profissionais tenham surgido em 2010, principalmente na Europa, o debate só se estabeleceu a partir de 2017, com o fortalecimento do movimento #MeToo.
Na época, grandes atrizes de Hollywood começaram a denunciar casos de abuso e assédio nos bastidores, e as histórias repercutiram mundialmente, especialmente os casos envolvendo o produtor Harvey Weinstein. Naquele período, a coordenadora de intimidade Renata Soares morava nos Estados Unidos, onde acompanhou o movimento de perto.
“Participei das manifestações e logo comecei a notar essa movimentação dentro da indústria. Com os escândalos vindo à tona, muitas pessoas começaram a falar sobre suas experiências. Afinal, estamos falando de uma indústria em que existe uma grande assimetria de poder: pessoas com muita influência lidando com sonhos e vulnerabilidades, especialmente no trabalho com atuação, que envolve o corpo e a intimidade”, analisa ela, que também é atriz, produtora e diretora.
Foi nesse contexto que a atriz Emily Meade, que atua na série “The Deuce”, da HBO, propôs aos produtores que pensassem em uma nova forma de trabalhar, especialmente porque a série exigia cenas de muita nudez e simulação de sexo.
“A HBO, então, contratou Alicia Rodis, que já estudava o tema, para atuar como coordenadora de intimidade. E aí a notícia foi se espalhando. Com a iniciativa, outras plataformas e produtoras passaram a se mobilizar também, pois era um momento crítico em Hollywood. Nenhuma empresa podia mais se omitir e fingir que nada estava acontecendo. Tudo aconteceu muito rapidamente. De repente, a coordenação de intimidade se tornou um tema recorrente nas conversas da indústria”, afirma.
Profissão chega ao Brasil
A profissão desembarcou oficialmente no Brasil em meados de 2021. À época, a Amazon Prime fez um mapeamento de preparadores de elenco para participarem de um curso de coordenação de intimidade com Amanda Catherine Blumenthal, responsável por certificar profissionais nos Estados Unidos.
Quatro profissionais foram selecionadas para a formação, dentre elas a mineira Larissa Bracher. Atriz, ela já trabalhava como preparadora de elenco e coach de atores, mas viu na oportunidade uma maneira de ampliar sua área de atuação. Desde então, Larissa trabalhou em diferentes projetos da própria Amazon, além de Globoplay, Netflix, Disney +, Sony Pictures e Warner Boss.
Em sua avaliação, um dos maiores desafios da profissão reside no fato de o cargo ainda soar como uma novidade. “Imagine: se hoje, em 2024, a gente ainda precisa explicar o que é a coordenação de intimidade e se fazer entender em muitas produções, em 2022 e 2023, praticamente ninguém falava sobre isso. Então, acho que o principal desafio foi alinhar todo mundo. Nesse sentido, nós realmente capinamos um mato muito alto. Nós tivemos um trabalho intenso de letramento, de uma verdadeira pedagogia para explicar o que era essa nova função”, avalia.
Dentre seus trabalhos, um dos que mais se destaca é o “Justiça 2”, da Globoplay. A produção é cheia de cenas quentes, especialmente entre Jordana (Paolla Oliveira) e Egisto (Marcello Novaes) e entre Jordana e Milena (Nanda Costa).
“‘Justiça’ foi um trabalho maravilhoso, raro, em que a direção aderiu imediatamente à proposta. Nós fizemos juntos a primeira cena com coordenação de intimidade da história da televisão, que foi justamente uma cena entre a Paolla Oliveira e a Nanda Costa. O elenco todo acolheu a proposta de forma muito natural, até porque tínhamos várias cenas íntimas para trabalhar”, sustenta Larissa.
Afinal, o que faz uma coordenadora de intimidade?
O trabalho de coordenação de intimidade começa ainda no roteiro de uma obra audiovisual. Preparadora de elenco há 25 anos e uma das primeiras a assumir a função no Brasil, Maria Silvia Siqueira Campos conta que a leitura do roteiro é fundamental para identificar todas as cenas que envolvem algum grau de exposição ou limite do corpo humano, como beijo, filmagens de banho ou sexo simulado. “Tudo isso é considerado cena íntima. Já nessa leitura inicial, eu aponto o que precisa de atenção, onde e como eu preciso estar presente”, salienta Maria.
Depois, é hora de a coordenação de intimidade entrar em contato com a direção para entender o que foi pensado para a cena. “Às vezes o diretor ainda nem sabe exatamente, então essa conversa é fundamental para termos os instrumentos certos”, conta. Na sequência, é o momento de conversar individualmente com cada ator e atriz. “É aí que eu descubro os limites de cada um. Por exemplo, alguém pode dizer ‘não deixa ninguém encostar na minha orelha’, isso não é uma questão do personagem, é um limite pessoal. Então, em nenhum momento da cena isso pode acontecer”, comenta.
A coordenadora de intimidade também conversa com os demais participantes da cena para, só então, ir para a sala de ensaio. “Nesse espaço, coreografamos os movimentos dos corpos. E tudo isso acontece com os atores vestidos, com roupa adequada para ensaio. A gente coreografa mesmo, respeitando os limites de cada um. Com a coreografia pronta e os atores felizes com ela, eu chamo o diretor para assistir. Muitas vezes o diretor se surpreende, porque ele pede as coisas com receio, e as cenas saem melhores que as imaginadas inicialmente”, explica.
Mas o mais importante desse processo, segundo Maria, é que, uma vez feito um combinado, nada mais pode ser alterado no momento da filmagem. “Se ficou definido que a mão vira de lado, ela vai virar de lado e ponto final. Não há mais conversas”, ressalta.
A coordenadora de intimidade também deve acompanhar as cenas na hora da gravação. “No set, eu nunca atuo sozinha. Preciso da colaboração da produção, do assistente de direção, da equipe de platô… O set é fechado, com o mínimo de pessoas possível. Do lado de fora, os monitores ficam desligados, porque essas não são cenas para serem assistidas naquele momento, e sim para serem captadas. A produção é fundamental para garantir que tudo isso aconteça da melhor forma”, relata.
Atrizes avaliam positivamente a coordenação de intimidade
Da outra ponta, quem protagoniza cenas delicadas enxerga no trabalho de coordenação de intimidade parte fundamental de uma produção audiovisual. A atriz Valentina Herszage, por exemplo, foi acompanhada por Maria Silvia Siqueira Campos durante as filmagens de “As Polacas”, drama que retrata a luta de imigrantes polonesas contra a exploração de uma rede de prostituição no Brasil. “Essa é uma função nova no Brasil.
A Maria fez o meio de campo entre os atores, e a equipe nos ajuda a liberar os nervosismos e qualquer tensão. Senti que foi um set muito acolhedor”, relata.
Agatha Moreira é outra artista que também foi acompanhada por uma coordenadora de intimidade recentemente. Ela esteve no ar na novela das nove “Mania de Você”, quando protagonizou cenas quentes com Chay Suede, e contou que o apoio profissional foi fundamental para seguir bem com o seu papel.
“O Chay me respeita muito e é muito cuidadoso. Então as cenas são super de boa de gravar. É a primeira novela que faço que tem uma preparadora para as cenas de sexo. É uma pessoa que cuida de bem-estar dos atores no momento da gravação”, disse em entrevista ao “Extra.”