Enquanto faz uma viagem de trem, um homem em busca da liberdade precisa lidar com tipos estranhos, invasivos, que surgem em sequência, lembrando-o constantemente de suas próprias perturbações, culpas e ressentimentos em insistentes interações. A intrusão desses outros passageiros só cessa quando a locomotiva de um só vagão apresenta problemas, parando em uma estação desconhecida. 

Ao desembarcar, longe do destino sonhado, o homem passa a vagar pelas ruas de uma cidade distópica, onde não se pode fazer perguntas, mas também onde, misteriosamente, sabem o seu nome: Romeu. Visto como suspeito, contra quem recai acusações difusas, ele acaba preso e submetido a uma série de interrogatórios e à tortura, cujo sentido não pode compreender.

Em linhas gerais, este é o enredo de “Girassol Vermelho”, novo longa do videoartista Eder Santos que chega às salas de cinema brasileiras nesta quinta-feira (3 de abril). Esse resumo, contudo, diz pouco sobre os atributos da obra, livremente inspirada nos contos “A Cidade” e “Os Comensais”, do escritor mineiro Murilo Rubião, mestre do realismo fantástico, que, a exemplo de autores como Franz Kafka, mistura ao cotidiano elementos da ordem do extraordinário.

Mas, no longa protagonizado por Chico Diaz, particularmente, a opção é outra: em vez dos acontecimentos mágicos eclodirem naturalmente em situações banais, o que vemos em cena é uma ambientação onírica, onde o absurdo logo ganha corpo. A história, afinal, é emoldurada por uma estética tão exuberante quanto artesanal – não por acaso, o diretor teve no teatro seu primeiro contato com a maioria dos atores em cena.

Ambientação fabril-distópica

Gravado ao longo de 12 dias, das 19h às 0h, em uma fábrica de cimento desativada, em Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte, “Girassol Vermelho” tem direção de arte de Laura Vinci e Joana Porto, que, neste filme, em boa medida, recorrem a dispositivos do teatro para fazer cinema. Há muita fumaça, cenas em locações escuras, maquinários pesados e estruturas como gaiolas e grades, remetendo sempre à noção de opressão e aprisionamento. Sensações amplificadas, ainda, pela fotografia de Stefan Ciupek, que experimenta, no filme, a captação de imagens com bordas desfocadas, além de brincar com um sistema de iluminação direcional.

Além disso, videoartes criadas por Eder Santos para o filme se integram à narrativa e contribuem para essa ambientação fabril-distópica. Há, por exemplo, o recurso das imagens de câmeras de segurança – que não são estranhas à trajetória do artista –, geralmente usadas para trazer uma perspectiva mais amplificada de alguma cena. Há também telas sobrepostas que remetem ao Big Brother do clássico “1984”, de George Orwell, onde o personagem de Daniel de Oliveira surge emitindo comunicados e trazendo informações, que demarcam espécies de capítulos, organizando a trama.

Luísa Lemmertz em cena do filme 'Girassol Vermelho' | Crédito: Pandora Filmes/Divulgação

Outra aparente referência literária é “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, considerada uma das principais obras do gênero nonsense. Neste caso, porém, a história surge com um verniz lynchiano: em vez de um coelho apressado, quem conduz nosso personagem para as camadas mais profundas daquele pesadelo febril é uma “femme fatale”, vivida por Luísa Lemmertz. Usando vestido vermelho, essa mulher misteriosa atrai Romeu, se deixando ser perseguida por ele, enquanto o conduz, secretamente, rumo a uma emboscada.

A violência

Após ser detido, o protagonista de “Girassol Vermelho” é alvo de diversas inquirições e torturas, sendo trancafiado em gaiolas e outras estruturas frágeis – um artifício que parece intencional e deve fazer os espectadores se questionarem das razões que levam aquele homem a se submeter à violência, quando, aparentemente, poderia escapar com facilidade. Uma questão que fica em aberto, ampliando as possibilidades de leitura obra e, por isso, representando um acerto do roteiro de Mônica Cerqueira – que, vale mencionar, é um nome fundamental da cultura do cinema de Belo Horizonte, onde atuou como cineclubista, sendo fundadora do Savassi Cineclube, do Usina de Cinema e do Cine Imaginário.

Entre os inquisidores de Romeu, que surge cada vez mais desnorteado e até despersonalizado, está a personagem de Bárbara Paz. Está na boca dela uma referência folclórica da história recente da política brasileira: “Não tenho provas, mas tenho convicção”, expressão associada à Operação Lava Jato, que se tornou símbolo de abuso de poder e perseguição institucional, temas caros à “Girassol Vermelho”, que imagina um pós-mundo tecnocrata, onde humanos são submetidos aos arbítrios d’A Máquina.

Bárbara Paz interpreta um dos inquisidores do protagonista de 'Girassol Vermelho' | Crédito: Pandora Filmes/Divulgação 

Trilogia RGB

Com uma sequência final especialmente sufocante, “Girassol Vermelho” foi selecionado para abrir a Mostra de Cinema de Tiradentes de 2025 e marca o início da trilogia “RGB”, sigla que faz referência às cores vermelho, verde e azul, fundamentais na formação das imagens digitais. Além do filme em questão, a trilogia inclui “Deserto Azul”, de 2014, e um terceiro título, já em desenvolvimento. 

O conceito cromático reflete a própria trajetória de Eder Santos, reconhecido por sua experimentação visual e pela fusão entre imagem eletrônica e narrativa cinematográfica. Desde os anos 1980, o diretor consolidou-se como um dos pioneiros da videoarte no Brasil, com suas obras exibidas em festivais internacionais e integradas aos acervos de instituições como o MoMA, em Nova York, e o Centre Pompidou, em Paris.

Hoje, o artista já não enxerga fronteiras entre a videoarte e o cinema. “Acho que esse filme, de agora, tem muito a ver com o teatro. Há muitos anos, fui ator de teatro e trabalhei com nomes como Carlos Rocha. Depois, quis fazer filme, mas acabei indo para o caminho do vídeo. Mas, com o tempo, observei que o cinema foi se aproximando mais do vídeo. Agora, acho que um filme é um vídeo super avançado”, avalia.