No Teatro Marília, na segunda metade da década de 1960, Inês Peixoto se encontrou pela primeira vez com o universo do teatro. “Fui assistir a uma peça infantil chamada Liderato, sobre um ratinho que se organiza para libertar sua vila da opressão do Dom Gatão. Eu tinha uns 6 ou 7 anos e fui levada por uma amiga da minha irmã, a Sandra Mansur, que atuava no espetáculo”, recorda.
A lembrança desta primeira vez segue viva na memória da atriz, diretora e dramaturga, talvez por sua importância: o impacto causado pela experiência, de certa forma, alicerça toda sua história a partir de então.
“Eu não entendia muito bem, mas, hoje, sei que foi naquele momento que decidi ser atriz”, confessa, inteirando que, tamanho o gosto que tomou pelo teatro, ainda criança, voltou ao lugar para assistir a outros espetáculos – muitos dos quais dirigidos pelo diretor, ator, produtor, gestor cultural e professor Pedro Paulo Cava, um dos nomes fundamentais da história do Teatro Marília, que, celebrando 60 anos, dá continuidade a uma programação especial, iniciada em dezembro do ano passado, que une passado e futuro em uma série de atrações gratuitas, como a apresentação do espetáculo “Vestido de Noiva” e montagem da vitrine instalação “Vestido de Noiva, ontem, hoje e sempre”.
Vocacionado para o teatro
Olhando em retrospecto, soa providencial que o Teatro Marília tenha sido inaugurado, em 1964, justo com a peça “Vestido de Noiva”, texto de Nelson Rodrigues que modernizou a dramaturgia no país.
“Abrir as portas e subir as cortinas com uma obra tão icônica, feita por um dramaturgo que é o maior do país e que fala do brasileiro com linguagem cotidiana, de dramas e tragédias que causam identificação, certamente foi um jeito de começar com o pé direito”, exalta a diretora Ione de Medeiros, que, com o grupo Oficcina Multimédia, volta a levar o título para o tablado do Marília neste sábado (26) e domingo (27).
“Por coincidência, depois de todo esse tempo, ‘Vestido de Noiva’ volta ao mesmo palco mais uma vez sob a direção de uma mulher”, comenta Ione, lembrando que, na década de 1960, a montagem tinha à frente a pioneira do teatro Haydée Bittencourt, enquanto, no elenco, estava o consagrado ator Eidi Ribeiro.
A diretora, agora, se sente honrada em participar das celebrações pelas seis décadas em atividade do Marília. “Minha história passa por esse lugar, que foi um dos primeiros destinos para o teatro em BH. Foi lá que fiz minhas primeiras apresentações, seja como atriz ou como diretora”, orgulha-se, elogiando outros atributos do prédio, como o pé-direito alto e a localização em uma região de fácil acesso.
Testemunha da história
Aos atributos destacados por Ione de Medeiros se soma uma constelação de outras qualidades que só uma instituição em atividade há mais de seis décadas poderia ostentar. A começar pelo fato de, ao longo de todo esse tempo, o espaço ter sido testemunha da história belo-horizontina e brasileira. Mais do que isso: são histórias que se confundem, como defende Paula Senna, diretora de promoção das artes da Fundação Municipal de Cultura (FMC).
“A biografia do Teatro Marília está interligada à história de BH e do Brasil. No período da ditadura, por exemplo, o lugar se tornou um reduto de resistência política, seja nos palcos, na coxia ou no Stage Door, o bar que funcionava no segundo andar do prédio e reunia a comunidade artística e era um espaço para organizar ações de enfrentamento ao regime”, reflete, antecipando que, em meio às celebrações dos 60 anos do espaço, há a intenção de fazer uma ativação desse bar histórico, que também está presente nas memórias de Inês Peixoto.
Na adolescência, lembra a atriz, o Marília seguiu no seu radar, fosse para assistir a peças com foco em jovens e adultos, fosse para ir ao Stage Door. “Era um ponto de encontro dos artistas da cidade, um espaço frequentado por pessoas bacanas, que estavam fazendo arte, teatro e cinema. Então, a gente sempre queria ir, e ia até meio às escondidas”, confessa.
Um palco prestigiado
Além do legado para a formação e organização política da classe artística, ela destaca a importância do Marília para a história do teatro na cidade. “Por lá, passaram diversos nomes consagrados, como Elis Regina e Milton Nascimento, Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Tony Carreiro, sem contar os tantos artistas da cena local que já se apresentaram naquele palco”, cita a diretora de promoção das artes da FMC.
O lugar chegou a abrigar até mesmo um curso de artes cênicas, o Teatro Escola da Cruz Vermelha, que, fundado e dirigido por Priscila Freire, funcionava no porão do prédio. “Eu até quis estudar lá”, comenta Inês Peixoto. Por um capricho do destino, porém, seus caminhos foram outros. A profissionalização veio pelo Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais (TU/UFMG) e Centro de Formação Artística (Cefar, atualmente Cerfart, incluindo também formação tecnológica), da Fundação Clóvis Salgado (FCS).
Mas não tardou para que a atriz se reencontrasse com o palco que representou seu primeiro encontro com o teatro: “Logo depois de me formar, fiz ‘Os Cigarras e Os Formigas’, com direção do Afonnso Drumond. Eram três sessões por fim de semana, uma no sábado e duas no domingo, com a casa sempre lotada ao longo de uma temporada que foi longuíssima. Depois, voltei com outras montagens, como ‘Órfãs de dinheiro’”, recorda, fazendo menção ao monólogo protagonizado e escrito por ela mesma.
Um inventário entre recortes
Boa parte das histórias de artistas que estiveram no Marília foi documentada, à sua maneira, por Dona Naná, que começou como faxineira e, depois, se tornou camareira do teatro.
“Ao longo de 30 anos, ela vai construindo um livro com recortes de autógrafos, fotografias e recados que os artistas e produtores deixavam para ela”, explica Paula, inteirando que um documentário sobre essa personagem integra a programação dos 60 anos do Marília, com lançamento na noite desta sexta-feira (25), em uma sessão gratuita. Com duração de 15 minutos, o filme “Por trás das Cortinas: O legado de Dona Naná” tem direção de Tainá Rosa e Mirela Persichini.
Vale registar: por sua importância histórica, tão flagrante nos relatos daqueles que estiveram no palco, na plateia ou na coxia ao longo dos últimos 60 anos, o Teatro Marília é reconhecido, desde 1991, como patrimônio belo-horizontino pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município para uso cultural. O tombamento, neste caso, protege a função do prédio, que deve ser destinado apenas para fins de uso cultural.
Inclinação dançante
Se peças de teatro, sobretudo infantis e de artistas locais, são uma das pedras fundamentais do Marília, as exposições e a dança são outras. “Ele já sediou a Galeria de Arte Guignard e segue sendo usado como espaço expositivo”, informa Paula Senna.
Já a dança está tão presente no ethos do lugar que, não por acaso, o Marília foi escolhido para sediar o Centro de Referência da Dança de Belo Horizonte (CRDançaBH), atendendo a uma demanda antiga da categoria.
Oportunamente, encerrando as comemorações dos seus 60 anos, é realizado no equipamento o projeto “Terça da Dança” em uma edição especial do “Cabaré Varejão”.
Realizado pela artista Marina Viana, idealizadora do Teatro 171, e pelo bailarino e coreógrafo Guilherme Morais, o trabalho, apresentado na terça-feira (29), tem foco no fomento dos encontros práticos entre profissionais de diferentes áreas, interessados em dialogar com novas linguagens e possibilidades de criação em produção artística contemporânea. Artistas da dança, selecionados previamente na página @teatro171, apresentarão suas performances no palco do Marília, resultando em um grande “show de variedades”.
Origem
Mais que testemunha da história de BH e do Brasil, o Teatro Marília, em suas raízes, ecoa um pedaço da história mundial: pertencente à Cruz Vermelha de Minas Gerais, o complexo de prédios onde, há 60 anos, funciona o equipamento cultural começou a ser construído em 1942, no contexto de um planeta em guerra.
“Com a Segunda Guerra Mundial, meu pai (Clóvis Salgado, ex-governador de Minas Gerais) teve a intenção de criar um lugar para formar enfermeiras em BH”, relata Marília Salgado, que empresta o nome ao equipamento cultural. Ela complementa que a estrutura foi ampliada na década de 1960, quando os arquitetos responsáveis previram a criação de um auditório para a escola de enfermagem. “Mas o teatro nunca funcionou para este fim. Meu pai sempre gostou muito de arte e desde o começo pensou em fazer ali um teatro”, garante ela, que volta a apresentar no lugar a exposição “Teatro em Construção: o Marília nos seus primeiros 20 anos”.
A mostra é baseada em três aspectos centrais da construção do espaço: o físico, que destaca a construção do primeiro espaço destinado às artes cênicas; o artístico, ressaltando grupos e artistas mineiros que se dedicaram a estudar, pesquisar e levar espetáculos de alta qualidade ao palco do Marília; e o político, que reflete a importância do teatro para a construção de uma resistência ao regime militar. A exposição será reaberta no dia 25 de abril, às 19h. A visitação é gratuita e não é necessário retirar ingressos.
Vale dizer, embora tenha dado nome ao espaço, Marília faz questão de evitar ficar com os louros pela obra. “Eu não tenho mérito nenhum pela existência desse lugar. Na verdade, eu era uma menina, tinha uns 14 anos quando houve a inauguração. Então, não tinha nem idade para ser homenageada por nada. Só mesmo por ser uma boa filha”, brinca, inteirando que a escolha do nome surgiu em tom de brincadeira. “As pessoas queriam batizar como Clóvis Salgado, mas meu pai não quis. Ele sugeriu que fosse Marília quase como uma piada interna, pensando que as pessoas iriam pensar que era uma homenagem à Marília de Dirceu, enquanto eles saberiam que, na verdade, era outra Marília”, relata.
Por efeito dessa decisão, ela por muito tempo ficou conhecida como “Marília do teatro”. “Quando eu ia assistir a alguma peça, todo mundo brincava com isso”, recorda ela, que celebra o fato de o espaço ter destinação protegida pelo patrimônio municipal, uma garantia a mais da longevidade do projeto, que, quando surgiu, cumpriu o papel de ocupar uma lacuna na cidade, que não contava com teatros de menor porte.
SERVIÇO:
O quê. Aniversário de 60 anos do Teatro Marília
Quando. A partir desta sexta-feira (25), até terça-feira (29)
Onde. Teatro Marília (avenida Professor Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia)
Programação
O quê. Vitrine “Vestido de Noiva, ontem, hoje e sempre”
Quando. Até o dia 27 de maio
Onde. Fachada do Teatro Marília
O quê. Espetáculo “Vestido de Noiva”
Quando. Neste sábado (26), às 20h, e domingo (27), às 19h
Quanto. Gratuito. Ingressos com retirada antecipada no site Sympla ou bilheteria do teatro antes do espetáculo.
O quê. Abertura da exposição de longa duração “Teatro em Construção: o Marília nos seus primeiros 20 anos”
Quando. Nesta sexta-feira (25), às 19h. Visitação de terça a domingo, das 10h às 20h
Onde. Hall do Teatro Marília
Quanto. Gratuito. Não é necessário retirar ingresso
O quê. Filme “Por trás das Cortinas: O legado de Dona Naná”
Quando. Nesta sexta-feira (25) às 20h
Quanto. Gratuito. Ingressos com retirada antecipada no site Sympla ou bilheteria do teatro antes da exibição do filme.
O quê. “Terça da Dança” - Cabaré Varejão
Quando. Na terça-feira (29), às 20h
Quanto. Gratuito. Ingressos com retirada antecipada no site Sympla ou bilheteria do teatro antes do espetáculo.