“No Brasil, certamente, nenhum outro movimento histórico será capaz de sintetizar tão bem a luta do país em busca de sua independência quanto este, de conjura, da Inconfidência Mineira”, inicia a escritora Maria Alice Barroso para, mais à frente, completar: “Agora, (o imortal) Domicio Proença Filho o traz para a literatura em formato até então desconhecido: não somente através do poema, mas também a este os fatos históricos narrados em prosa poética”. As passagens constam na apresentação do livro “Oratório dos Inconfidentes”, que, lançado originalmente em 1989, ganha agora uma nova edição, saindo pela editora Tinta Negra.
Ilustrada com estudos e desenhos do icônico painel “Tiradentes”, de Candido Portinari, cedidos pelo Projeto Portinari, a publicação é dividida em três partes. A primeira, “Poemas”, reúne 49 textos, que funcionam como obras isoladas, com autonomia literária, ou mesmo como um conjunto, ecoando uma unidade de expressão, como aponta o historiador, professor, ensaísta e crítico Flávio Loureiro Chaves no prefácio da obra. Já a parte que apresenta textos em prosa são divididos em três frentes: “Estações do Discurso”, com 18 peças, “Limites da História”, com 13, e “As Palavras da Lei”, com quatro. A seção final, intitulada “Roteiros das Estações e Outros Caminhos”, desnuda as principais fontes usadas por Domicio para a criação do livro.
Em conversa com O TEMPO, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), um dos mais notáveis nomes da crítica, da historiografia literária e da poesia brasileira contemporânea, falou sobre como a obra articula a criação poética e a pesquisa histórica e dos bastidores do lançamento e relançamento do título – que, como descreve Maria Alice Barroso, aqueles lerem certamente vão recordar: “Antes de D. Pedro ser sagrado Imperador do Brasil, a Nação brasileira já havia sido ungida com o sangue do Alferes, para entrar, assinalada com a palma do martírio de seu herói, no concerto das nações livres”.
Mini-entrevista
Domicio Proença Filho, autor de Oratório dos Inconfidentes:
1. Quero começar a nossa conversa falando sobre os bastidores do relançamento de “Oratório dos Inconfidentes (Faces do Verbo)”. Quando começaram e como foram as conversas que levaram à nova edição do título? Respondo com prazer. A primeira edição deveu-se a um entendimento com o meu querido e saudoso amigo Leo Christiano, então dono da Editora que leva seu nome, especializada em livros de arte. Na base, o patrocínio de uma empresa, cujo proprietário, por coincidência, era, então, cunhado do autor. Graças à generosidade de João Candido, outro amigo fraterno, ganhou reprodução na capa do Painel da Inconfidência, de Portinari, e de esboços do famoso quadro. Confesso que fiquei de ego inflado… O livro teve circulação discreta. Mesmo tendo sido publicado no ano do bicentenário da Conjuração Mineira. Não foi objeto de ‘lançamento’ nem de frequência assídua em prateleiras de livrarias. Muito menos em cogitação de prêmios literários. Mereceu, em contrapartida, acolhida da crítica universitária, e, em especial, do rigor de duas vozes mineiras: Letícia Malard e Wilton Cardoso. Era a consagração. Duas tiragens, reduzidas, esgotaram-se no mesmo ano. Nos começos do ano passado, Sérgio Ricardo França, assumiu a responsabilidade editorial do Grupo Zit. Conhecedor da obra e desse histórico, propôs o seu relançamento. De um lado, por força da atualidade de sua significação cultural. De outro, porque a matéria e a natureza da obra coincidiram com uma das linhas editoriais do grupo. Por coincidência, a primeira edição fora produzida na gráfica do mesmo Grupo.
2. O escritor e colunista Tom Farias, ao escrever sobre o livro, destaca a associação entre poesia e imagem, com base em feitos históricos, como um dos grandes atributos de sua obra poética. Como se dá essa costura na prática? A criação poética é precedida pela pesquisa histórica ou as coisas andam juntas? Aproveito para agradecer a generosidade da leitura de Tom Farias, que navega com galhardia nessas e noutras águas. Respondendo a sua pergunta: as duas dimensões, segundo entendo, ressalvado o contraditório, andam juntas. Sobretudo se o poético e o histórico se integram. A precedência pode ser de uma ou de outra. No caso do Oratório, os poemas foram inspirados pelo painel de Portinari, a partir de um momento em que me vi diante de uma reprodução. Obviamente eu já conhecia o quadro. Mas, como me ensinou meu professor de Literatura Hispano-Americana Manuel Bandeira, quando lhe pedi que escreve um poema num de seus livros de poesia: a poesia não é feita quando a gente quer, mas quando ela, a poesia quer. Uma curiosidade, a propósito da caminhada em conjunto. Feito o livro de poemas, submeti-os à leitura de Zé Rubem Fonseca, mais um amigo. Poucos sabiam, mas era um ávido leitor de poesia. Depois de ler, empolgado, me perguntou por que eu não fazia como Pound? Quis saber o que Pound fez que eu não tinha feito. Resposta: havia passagens nos poemas que exigiam explicitações, notadamente porque remetiam a fatos históricos. Aceitei o desafio. Mas não fiz exatamente como Pound. A observação de Zé Rubem me fez mudar o projeto do livro. Impôs-se a ampliação da pesquisa. Acrescentei, então, as “Estações do discurso”. Dei-me conta, diante delas, de que exigiam contextualização. Daí mais um acréscimo: o discurso da História. Optei por textos curtos, em prosa poética. Intencionalmente, meia a uma página por “capítulo”. Na sequência, juntei a linguagem jurídica: a transcrição, na grafia original, de trechos dos Autos de devassa, relacionados com a Conjuração Mineira, a que intitulei “As palavras da Lei”. Esses procedimentos me conduziram à necessidade de um subtítulo: Faces do verbo. O livro se fazia da integração de várias modalidades do discurso.
3. Maria Alice Barroso já descreveu a obra como um “livro-documento” e “livro-arte”, simultaneamente. É uma descrição precisa? Como o senhor a descreve? Concordo com Maria Alice Barroso. E acrescento: ‘O Oratório dos inconfidentes’ associa poema, prosa poética, informação e documentação históricas. Configura, assim estruturado, a relação entre a Conjuração Mineira, episódio-referência da História brasileira, a Literatura, a língua portuguesa e a arte pictórica, numa perspectiva interdisciplinar. Possibilita, ao lado do prazer da leitura do texto literário, espaços de reflexão. Como assinalou a leitura crítica e definidora de Letícia Malard, objetiva ser, sobretudo, “um cântico dos cânticos à Liberdade”.