Quando a personagem de Juliette Binoche entra em cena, no filme "Entre Dois Mundos", já em cartaz nos cinemas, a impressão é de que ela está num processo de construção de algo novo em sua vida, ao se mudar para cidade litorânea de Caen, na França. Depois de quase 20 anos se dedicando à casa e ao marido, ela não vê outra alternativa a não ser trabalhar com serviços gerais.
Marianne carrega aquele rosto de quem sofreu ou esconde algo muito dolorido, em que somente um recomeço, sem que ninguém saiba de seu passado, poderá lhe dar talvez o sossego necessário, ainda que a custo de muito trabalho pesado. A possibilidade de um alento está na percepção de histórias de colegas que se entregam a um serviço tão desprezado, sem perderem a dignidade.
Ao invés de vislumbrar o descobrimento de uma nova Marianne a partir desses encontros, o filme de Emmanuel Carrère segue outro rumo, mais previsível, muito comum no cinema hollywoodiano, em que um segredo da protagonista pode colocar tudo a perder - e esse mistério não está atrelado necessariamente ao passado dela, mas sim ao presente e suas intenções em Caen.
Essa abordagem é apresentada ao espectador logo na primeira meia hora, tirando a força das primeiras cenas de Marianne com a dura realidade das faxineiras. A interação deixa de ter uma mão dupla, fazendo da personagem uma mera observadora. Ao mesmo tempo em que cresce nela um sentimento de culpa e falta de ética, ao saborear aquelas narrativas tristes, ainda que em prol de algo nobre.
Nesse sentido, "do quanto pior, melhor", as melhores sequências são aquelas em que, com dados reais, é mostrada a rotina de limpeza na balsa que conecta a França à Inglaterra, em que as faxineiras têm apenas 1h30 para arrumar quase 300 quartos. Carrêre, como era de esperar, enaltece as relações afetivas construídas nesse universo, um bálsamo frente a todas adversidades.
Falta sensibilidade a Carrère para registrar esses encontros para além do artifício em evidenciar um sentimento de humanidade, da beleza encontrada em vidas anônimas. No elenco se destaca Hélène Lambert, que dá vida à combativa Cristèle, personagem que, num filme de Ken Loach - cineasta acostumado a temas que tratam dos profissionais invisibilizados - seria a grande protagonista.
Com três filhos, sem tempo para namorar e se divertir, se entrega ao trabalho intenso até uma pequena abertura se oferecer, ao conhecer Marianne. Essa talvez seria a história a ser contada, mas o filme - baseado no romance “Le Quai de Ouistreham”, de Florence Aubenas - opta pela condução de alguém que está numa posição mais distanciada das lutas de classe, apesar de querer compreendê-la e denunciá-la.
Mas esse desejo de denúncia fica só em Marianne, sem passar para o espectador, que se dá por satisfeito com essa mediação, sem ser provocado pela narrativa. Com tantos personagens interessantes e "vivos" que surgem no caminho dela, não se poderia esperar outro resultado do que uma gradual perda da força que um tema como esse poderia ensejar, até chegar a um final óbvio, sobre dois mundos que não se cruzam.