É segunda-feira, começo de tarde, e o quintal de uma casa modesta no bairro São Paulo, na zona nordeste de Belo Horizonte, vibra ao som de pandeiro, cavaquinho e vozes que entoam clássicos de Cartola, Arlindo Cruz e Beth Carvalho. Não há placa na entrada. Quem não conhece, passa direto, ainda que estranhe o movimento. Muitos, no entanto, param, geralmente em grupos, formando pequenas filas. Eles sabem: ali é o Belka Quintal Botequeiro, um dos endereços, com proposta à primeira vista inusitada, mais acolhedores do samba e de seus amantes na capital mineira – além de ser o berço de um movimento que vem se espalhando por BH e região metropolitana: o samba das tardes de segunda-feira.

Quem chega é recebido com sorriso largo por Jéssica Belmiro, anfitriã carismática que trata muitos dos clientes pelo nome, oferece fartos abraços aos conhecidos e coordena toda operação no lugar, ajudando a carregar cadeiras e acompanhando pessoalmente a montagem da roda. A casa – ou melhor, o quintal – abre às 13h e, enquanto o som não começa, já que o cavaquinho só vai chorar por volta de 14h30, o que se ouve é o borbulhar dos primeiros copos de cerveja e o estalar dos petiscos que fazem vezes de almoço para parte da freguesia.

Em pouco tempo, o lugar já pulsa e logo um batuque suave começa a preencher o ambiente sob as copas frondosas de uma pitangueira e uma gravioleira, que espalham sombra e frescor no ambiente, onde mesas e cadeiras são espalhadas entre muros coloridos, com algumas paredes preenchidas por grafites de Ataíde Miranda e Cinthia Lisboa, que dividem espaço com quadros de Jorginho Oliveira, ex-policial apaixonado por artes visuais e amigo da família Belmiro. A composição é quase um ensaio de um projeto adiado por Jéssica: a abertura, ali, de uma galeria de arte.

Jéssica Belmiro, idealizadora do samba de segunda-feira do Belka Quintal Botequeiro

A estrutura é modesta e funcional. Toldos cobrem parte do ambiente, garantindo proteção contra o sol e eventuais chuvas. As mesas, dispostas de forma espaçada, evitam qualquer sensação de aperto – uma escolha proposital. “Aqui ninguém precisa ficar vigiando cadeira. A ideia é que você se sinta em casa, possa dançar e depois voltar pro seu lugar, sem se acotovelar com ninguém”, expõe a anfitriã.

A roda de samba é montada no fundo do quintal – tudo a ver com a proposta informal, caseira, que o Belka incorpora. Liderada por Caio Bikari, a formação traz músicos de diferentes grupos da cidade, como A Firma, Sementes do Samba e Amigos da Resenha do Edgar. A apresentação é dividida em dois blocos: o primeiro mais tradicional, reverente aos grandes nomes do samba; o segundo, com um quê mais pagodeiro, é o momento em que o público se levanta, canta junto e se entrega ao ritmo. Jéssica faz questão de incluir ao menos uma voz feminina convidada a cada edição. “Tem que ter mulher no microfone. Não é só um detalhe. É parte do que a gente acredita”, garante.

Programa caseiro e diurno

Funcionando em um bairro residencial, o Belka Quintal Botequeiro é casa de quem busca programas caseiros e diurnos. Aberta às 13h, com roda de samba a partir de 14h30, tudo termina antes de 19h.

O público é plural. Há pessoas que moram na região, aposentados e, sobretudo, gente que trabalha em salão de beleza, supermercado, restaurante, bares, seguranças, artistas, autônomos – trabalhadores que compartilham da mesma condição: labutar enquanto a maioria folga. Por isso, a segunda-feira se torna uma espécie de refúgio – o dia em que podem, finalmente, ser protagonistas do seu próprio lazer. E isso impacta a experiência como um todo. “São pessoas que querem ‘domingar’, fazer algo a tarde, porque no dia seguinte trabalham. E não tinha muita opção na cidade”, examina Jéssica Belmiro, que ressalta que o movimento, neste dia, é muito diferente do de sexta (a casa abre apenas nestes dois dias da semana, além de receber shows de brasilidades um domingo por mês).

Samba de fundo de quintal atrai público variado em bar no bairro São Paulo, em BH | Crédito: Fred Magno/O TEMPO

“Não foi planejado, mas virou isso”, continua ela. “Tem gente que chega e diz: ‘Obrigada por fazer isso’. Isso me emociona muito. Porque eu entendo. Eu também já precisei de um espaço assim. A gente oferece o que gostaria de receber”, conclui

“Extra-oficialmente, a segunda-feira é o nosso domingo”, referenda Carlos Gomes, chef de cozinha do restaurante La Bocaderia Central e habitué no Belka. “A gente que trabalha na cozinha, a gente sabe que o servir é algo que ocupa muito tempo. E sobra muito pouco pra se servir. A segunda é o dia que temos pra gente. Antes, o que restava era ficar em casa, descansando, mas com a sensação de que estava faltando alguma coisa. O Belka veio preencher esse espaço: não é só o samba, é a conversa, é ver os amigos, é se reencontrar”, elogia.

Hoje, porém, o sucesso do lugar vem atraindo curiosos, vindos de outras praças. No dia em que a reportagem esteve no Belka, no início de junho, por volta das 16h, o quintal estava lotado. Entre os frequentadores, havia turistas vindos de Salvador, de São Paulo e do Rio de Janeiro, que pareciam encantados com o clima da casa. Tiravam fotos, sambavam, brindavam, sendo recebidos como amigos, mesmo sendo recém-chegados – inclusive, postos em uma mesa com quem já conhece bem o lugar. “Eles disseram que gostaram muito, que lembrava o Samba do Trabalhador, do Rio, com a diferença que o de lá começa mais tarde”, comenta Jéssica após falar com o trio de visitantes cariocas.

Do começo difícil ao sucesso pelo inusitado

“Quando a gente abriu, era só mato aqui. Falei com meu pai: ‘Vai ser aqui’. Ele achou que eu tava doida. Mas limpamos tudo, compramos freezer, montamos o estoque. Íamos abrir numa sexta, mas na quarta anunciaram o fechamento por causa da pandemia. Ficamos seis meses fechados. No máximo, fizemos umas pequenas apresentações pra amigos, cada um num canto, com medo ainda. Até hoje, todos seguem vindo. Virou todo mundo meio família”, relembra Jéssica Belmiro, acrescentando que a retomada foi gradual, com eventos em dias variados – jazz na sexta e brasilidades no domingo. 

De início, a segunda-feira permanecia intocada. “Era um dia morto. Só que eu sou inquieta. Gosto de inventar. Daí, no ano passado, o aniversário do meu pai, 27 de maio, caiu numa segunda. Eu estava limpando, abri uma cerveja, e pensei: ‘Rola um samba essa hora’. Liguei pro Caio (Bikari) e perguntei se ele topava. Ele disse que achava meio estranho, mas que podia tentar. Apostamos. E foi. Deu certo desde o primeiro dia”, detalha, sorrindo.

“Na época, era meio para amigos: só entrava com uma palavra secreta, que a gente divulgava individualmente, nas redes. Só que começou a dar fila”, prossegue, inteirando que, a partir de então, passou a adotar o sistema de retirada de ingressos antecipados – evitando, assim, que filas se formassem, pois, para ela, desconforto e indiscrição são inaceitáveis. As entradas custam R$ 70, dos quais R$ 20 são de cover artístico e R$ 50 convertidos em consumação. Cerveja gelada, drinks autorais e petiscos variados saem da cozinha, comandada por familiares e amigos que também colocam a mão na massa desde o início da história.