Apesar de carregar um nome fofo e ser uma animação, "Memórias de um Caracol" não tem nada de infantil. Depressão, solidão, família disfuncional, morte, fanatismo religioso, alcoolismo e velhice são alguns dos temas tratados pelo filme assinado pelo australiano Adam Elliot, que concorreu ao Oscar de animação neste ano - perdeu para o letão "Flow".

Realizado com a técnica de stop motion (animação quadro a quadro), o longa é narrado por Grace Pudel (voz de Sarah Snook), a partir do momento em que se encontra sozinha e triste, sem pais, irmão, marido e maior amiga. Sua trágica história é contada em flashback, desde  o dia que nasceu, com o lábio partido e a perda da mãe durante o parto.

Ao lado de seu irmão gêmeo, Gilbert (Kodi Smit-McPhee), que tem uma queda pela piromania, ela tem uma infância atribulada, sofrendo bullying constante e um pai alcoólatra que mete medo nos filhos com suas longuíssimas apneias. Os irmãos acabam tendo rumos diferentes, com Grace sendo adotada por uma família de nudistas.

A narrativa avança empilhando problemas atrás de problemas, mostrando que os seres humanos não têm um lado completamente bom ou mau. Esses sentimentos se misturam ou caracterizam fases da vida, como um juiz que vira mendigo após ser pego se masturbando no tribunal. 

Essa é a grande mensagem do filme de Elliot, sobre ter resiliência para enfrentar as adversidades da vida. No caso de Grace, não são poucas. A animação é "feia" e funesta, com os seres humanos carregando traços pesados, mas ao mesmo tempo a utilização de massinha é encantadora.

O molusco presente no título tem relação com bichinho de estimação de Grace, bem como a personalidade dela, introspectiva, sempre preferindo entrar numa concha interna diante das situações, como evidencia a narração em tom de conformação.

É um caracol, no momento em que Grace se despede de seus moluscos, que apontará o caminho para a redenção. E, como na fase mais amarga, tudo acontece de uma vez, com ela levando toda a experiência negativa para o trabalho, ganhando reconhecimento.

Com isso, Elliot mostra que nada é em vão, mesmo os episódios mais tristes, mesmo os "nãos" recebidos por coisas simples, que podem acontecer de maneira mais explícita como também inserida por trás de uma determinada cultura.

Fica evidente a crítica que ele faz às igrejas pentecostais, com pequenos núcleos de poder capazes de mais prejudicar do que ajudar as pessoas com regras que só valem para quem está fora desse círculo. Elas são caracterizadas pela exploração financeira e pelo forte preconceito.

No lado inverso a este cenário religioso, está o cinema, visto como uma espécie de cura para o sofrimento de Grace. É um momento de encantamento, quando o realizador homenageia o seu ofício, com Grace recorrendo à animação para abordar temas pessoais e adultos.