Em seu livro "Sérgio Cardoso: Ser e Não Ser", Jamil Dias conta um episódio que teria acontecido nos anos 1960, após a migração do ator do teatro para a televisão. O galã estaria em uma agência bancária, em São Paulo, quando foi interpelado por uma senhora raivosa, com o dedo em riste.
"Quem representou 'Henrique 4' com tanta genialidade não pode estar fazendo um papelzinho qualquer na televisão. O senhor não tem o direito de abastardar a sua arte, está ouvindo? Não tem o direito!", dizia.
O episódio representa mais do que um disparate à parte para Dias, professor do curso de artes cênicas da Universidade de São Paulo e biógrafo de Cardoso. Ele considera esta indignação com a migração do ator para a TV parte do que está por trás do esquecimento daquele que foi um dos grandes galãs da novela brasileira e um dos peritos do teatro paulistano. "Ele passou do teatro para a televisão numa época em que isso era um crime imperdoável", diz.
Dias escreveu sobre Cardoso pela primeira vez em um mestrado em 1990, um texto centrado na trajetória artística do ator e amarrado ao formato acadêmico, mais restrito. Um telefonema de Sylvia Cardoso Leão, filha do galã, o levou a revisitar o material, que passou a contemplar a vida pessoal do ator, indispensável para entender seu caminho.
Cardoso foi o primeiro ator do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, em São Paulo, ao lado de Cacilda Becker, a primeira atriz, após estrear no Rio de Janeiro com atuações elogiadas em peças de William Shakespeare. Foi um dos artistas mais importantes de um momento em que Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Ducina de Moraes, Marília Pêra, Raul Cortez, Paulo Autran e Sérgio Britto dominavam os palcos.
"A cena dos anos 1950 era a do grande ator, que remete às companhias inglesas e francesas, de nomes como Laurence Olivier e Jean-Claude Barrault. Surge graças ao apoio, naquele momento, da burguesia paulista, que adota esse projeto cultural por uma série de razões. Sobretudo, os imigrantes italianos vão ter a chance de se afirmar socialmente. Dinheiro eles já tinham, mas precisavam da legitimação cultural."
Em 1954, Cardoso deixou o TBC para fundar, com Nydia Lícia Pincherle, sua mulher, uma companhia que levava o nome dos dois, sediada no Teatro Bela Vista, no bairro de mesmo nome, no espaço onde hoje está o Teatro Sérgio Cardoso. Dono do que passou a ser o maior teatro particular da cidade, conhecido por receber os artistas estrangeiros que visitavam o país, o casal virou uma referência nas artes cênicas.
Em 1960, Sérgio Cardoso perde Nydia, que rompe com ele na interpretação de Dias, cansada de suas mudanças bruscas de humor e de outros ruídos da convivência causados, em partes, por sua dedicação ao teatro e a seus personagens. Perde também seu teatro, que fica com ela na partilha de bens. Em paralelo, a cena teatral passava por transformações importantes, com o crescimento de espaços como o Teatro de Arena e do Teatro Oficina, que propunham novas formas de encenar. A que ele representava perdia seu protagonismo.
"Ele era uma pessoa completamente explosiva, um gênio, mas completamente desprovido de senso prático. Era Lídia quem segurava as coisas, eles eram complementares nesse sentido", afirma Dias. "A partir dessa ruptura, ele passa a tentar reconstruir a carreira sozinho."
"Ele tenta milhões de coisas, faz uma série de espetáculos, mas eles não dão certo. Ele recolhe frustrações. Em 'A Visita da Velha Senhora', que era para ser seu grande reencontro com Cacilda Becker, dois monstros sagrados, ele não consegue, estava mal de saúde."
A má fase só passaria em 1964. Até então, Cardoso tinha antipatia pela televisão, onde fizera apenas aparições esparsas enquanto construía seu teatro com a ex-mulher, em especiais que ajudavam a financiar a obra. Quando recebeu o convite para participar de "O Sonho de Helena", da TV Tupi, a emissora padrão da sala de estar paulistana à época, hesitou, mas acabou aceitando a proposta.
O sucesso imenso despertou um novo momento de estrelato do ator, redescoberto como galã já quarentão, ainda mais conhecido do que em seu auge no teatro, graças ao alcance das telas desenganando quem achava que seu estilo não se adequaria ao novo formato.
"A televisão já caminhava para uma aproximação da realidade, uma linguagem mais coloquial, e ele carrega para sua atuação toda a carga teatral. Tinha uma voz treinada para falar bem, em vários tons, e um pausado, construído. Há quem ache que vai ser um fracasso, mas o público o adora."
Conforme sua projeção na TV Tupi cresceu, alcançando seu ápice em "Antônio Maria", o ator começou a chamar a atenção da emissora rival carioca, a Globo, que lutava para dominar a capital paulista. "Numa reunião de diretoria da Globo, decidiram que roubar o grande nome da Tupi era fundamental para que ela pudesse ter sucesso em São Paulo."
O ator foi então convidado para fazer "A Cabana do Pai Tomás", em que interpretou um personagem negro, com a cara tingida com tinta, prática conhecida com blackface e já à época apontada como racista por parte da classe artística.
O sucesso da trama foi contido, mas Cardoso continuou sendo convidado para atrações da emissora. Foi o principal coadjuvante do episódio "Meu Primeiro Baile", da série "Caso Especial", protagonizado por Glória Menezes - o primeiro programa gravado integralmente em cores no Brasil. Dias estranha que, apesar de sua passagem marcante pela Globo, ele seja ignorado na celebração dos 60 anos da emissora.
O fim do livro do biógrafo é, como a vida do ator, sem conclusões bem amarradas. Sérgio Cardoso morreu subitamente em 1972, aos 47 anos, no auge de sua celebridade, após um infarto. Logo após o enterro, surgem os boatos de que o galã seria cataléptico e teria sido enterrado vivo, burburinho sem lastro na realidade. O ator queria voltar ao teatro e estava próximo a um ponto de inflexão de sua vida, já superando a idade esperada dos pares românticos, mas a virada foi calada por sua morte. "Ele não vive para saber qual é o próximo passo", resume Dias.
SÉRGIO CARDOSO: SER E NÃO SER
- Preço R$ 90,00
- Autoria Jamil Dias
- Editora Edições Sesc