Quando Tereza Trautman foi buscar o seu primeiro salário no extinto banco Nacional, não a deixaram descontar o valor por ser menor de idade. "Avisei que era casada e o gerente disse que meu marido quem deveria sacar. Fiz um escândalo. Ainda não tinha me tocado que mulher era um ser de segunda. Fiz tal escândalo que acabaram liberando", lembra a cineasta, primeira mulher a dirigir um longa-metragem ficcional.

A cena demonstra bem o que foi a trajetória de Tereza, que teve que lutar contra vários preconceitos, especialmente etários e sexistas, para fazer seus filmes. Entre eles está "Os Homens que Eu Tive", lançado em 1973 e apresentado na Mostra de Cinema de Ouro Preto no final de junho, na cidade histórica mineira, que dedicou a sua 20ª edição ao humor feito por mulheres na história da cinematografia brasileira.

"Esse filme está sendo tão procurado, sendo exibido uma ou duas vezes por semana, de Belém do Pará até o Rio Grande do Sul. É impressionante, porque os tempos atuais são muito conservadores, desde a moda, com as mulheres vestindo barracas até o chão.  É a moda crente elegante. O conservadorismo coloca tanta coisa a perder", afirma essa filha de imigrantes alemães à reportagem de O TEMPO.

Ela estava tão à frente de seu tempo que escreveu o roteiro de "Os Homens que Eu Tive" quando tinha apenas 20 anos, em 1971. No ano seguinte, já ia rodar, com todo o elenco já escolhido, contratado e ensaiado, quando Leila Diniz foi para o Festival de Sidney e, na volta, o avião explodiu sobre a Índia", recorda, sobre o acidente aéreo que vitimou o símbolo da emancipação feminina no país, naquela época.

"Entrei em crise, porque a Leila e eu estávamos muito juntas. Eu vi a despedida da Leila com a filha, Janaína. Eu estava na casa dela e a Janaína, que tinha sete meses, não conseguia dormir, querendo a mãe o tempo todo", comenta a diretora, que não só perdeu a sua protagonista como também teve que trocar os demais atores, para que todos ficassem com uma idade mais próxima.

"Eu me senti completamente órfã, porque eu estava com uma direção e aquilo explodiu. O produtor achava que a solução seria fácil, bastava escolher outra atriz. Fiz teste filmado com nove atrizes e acabei ficando com a Darlene (Glória). Como ela tinha 32 anos (Leila tinha 27), eu tive que mudar todo o elenco para 'subir' a idade. Estava achando inverossímil, pois como iria botar gente mais velha para falar de coisa de jovem", assinala.

Tereza lembra que rodou o filme em três semanas, "algo quase impossível". O longa, que também tinha no elenco Milton Moraes, Arduíno Colassanti e Gracindo Júnior, tinha poucos recursos. "Era um filme barato. Tive que filmar de dia, porque não tinha equipamento de luz, e na casa de amigos", conta Tereza, que, em 1973, já estava separada do marido (casou com 18 anos) e tinha um filho.

A ideia para o filme aconteceu logo após se mudar para o Rio de Janeiro. "Com um filho para sustentar, escrevi um roteiro de uma comédia de costumes. Os homens falavam "as mulheres que eu tive". Resolvi inverter. Foi assim", relata a diretora, que não esperava um sucesso tão avassalador, permanecendo seis semanas com sessões lotadas no Rio de Janeiro, antes de ser interditado pela Censura.

"Os filmes estreavam na segunda e, na sessão da meia-noite de sábado, aproveitávamos para fazer os testes, sem muita divulgação. Neste dia, no Cine Roxy, havia 1.700 pessoas. Eu morava em Teresópolis e, quando cheguei, estava sem documentos. O porteiro não deixava entrar porque achava que eu não tinha 18 anos. Com meus amigos chegando, era uma farra para eles ao verem aquela cena", diverte-se.

"Mas quando eu escutei o início do filme, saí correndo para dentro do cinema. Estava lotado. Tive que sentar na terceira galeria, ao lado do projetor e da turma da bagunça. Os críticos não entendiam e perguntavam se era um filme autobiográfico. Eu ria, porque não tinha vivido tudo aquilo. Passaram a achar que Alberto Salvá, com quem eu namorava, estava me explorando", registra.

Mesmo sem estrear em Belo Horizonte, partiu da capital mineira o pedido de interdição do longa, que abordava a história de um casal que mantém um relacionamento aberto. "Teve uma viúva que ligou para o general Antonio Bandeira, que era o diretor-geral da Polícia Federal, dizendo que estava passando um filme indecente. Foi interditado dentro de uma leva que tinha 'Zabriskie Point' e 'A Classe Operária Vai ao Paraíso'", lamenta.

"Eu tentei de todas as formas liberar o filme. Minha carreira ficou interditada junto. Ninguém queria produzir para mim, nem a Embrafilme (estatal de cinema). O Roberia Faria (presidente da Embrafilme) dizia que eu iria fazer um filme interditável.  Mesmo após a liberação, para conseguir financiamento, a pecha fica", resigna-se Tereza, que, em 1987, lançou finalmente o seu segundo e último longa, "Sonhos de Menina-Moça".

No currículo, além de vários filmes como diretora-assistente, roteirista e produtora, ela também participou de um filme de episódios como diretora, em "Fantasticon: os Deuses do Sexo" (1970). Foi o seu primeiro trabalho no cinema. "Foi a minha escola, porque sempre fui autodidata, estudando por meio de livros e filmes. Era um episódio de 30 minutos feito com negativo fotográfico. Ele é diferente porque o cinematográfico tem a numeração na borda para editarmos", explica.

"Quando a gente foi ver os copiões, meu filme já era cinema, mesmo sem ter feito nada antes. Eu era a mascote e os outros tinham cinco, seis anos a mais do que eu. E eu achava que tinha sido um desastre", lembra. O episódio, no entanto, também enfrentou o mesmo problema de "Os Homens que Eu Tive" na Censura, recebendo vários cortes antes de ser liberado para exibição.

"Foi hilário, porque o distribuidor foi comigo e eu tentava convencer o diretor da Polícia Federal para não cortar, enquanto o distribuidor perguntava o que queriam que fosse cortado. Eu saí de lá furiosa com ele. Eu queria bater no distribuidor. Aí ele me falou: 'A gente corta hoje e amanhã põe de novo'", rememora Tereza, que quase perdeu a vida durante as filmagens de "Curtição".

"Com 23 dias que meu filho nasceu, comecei a filmar. Estava sangrando e tive que fazer uma curetagem. Depois descobri que tinha mioma. Como não parava de sangrar, eu estava anêmica", revela. Em casa, enfrentou violência doméstica. Antes, na escola, viu o Colégio de Aplicação da USP ser invadido por policiais, após o AI-5, e deixar de existir. "Eu era uma menina pobre, começando a trabalhar aos 15 anos porque a família precisava".

Também foi uma lutadora em prol do cinema nacional. "Fui peça fundamental para a criação do Ministério da Cultura (em 15 de março de 1985), das leis de incentivo, assim como eu tinha sido para a regulamentação da profissão em 1978. Eu tenho carteirinha de sócio remido desde o começo. Participei também da criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e da lei da TV paga", assevera.

Outro capítulo importante foi a fundação da emissora de TV por assinatura Cine Brasil TV, em 10 de julho de 2004. "Meu canal é o que mais exibiu produção independente brasileira em todos esses anos", comemora. São mais de 500 filmes e 120 séries em 21 anos."Não exibo sequer os meus filmes no canal, pois é o canal da produção independente nacional", diferencia.