“Eu já tinha decidido me aposentar do jornalismo e da literatura”, conta o escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva, de 66 anos, nos primeiros minutos da entrevista. Após mais de 40 anos de uma premiada carreira, diversos livros, incluindo a exitosa trinca autobiográfica “Feliz Ano Velho” (1982), “Ainda Estou Aqui” (2015) e o recente “O Novo Agora”, peças teatrais e roteiros para cinema e TV, o autor sentiu um certo esgotamento.
“Foi um cansaço, mesmo. Escrevi sobre todos os períodos que vivi na história brasileira, fui casado, já falei de relações, de filhos, fiz ficção, teatro, cinema. Estava na hora de dar um tempo, comecei muito cedo”, completa o escritor, que estreou na literatura aos 22 anos.
Tudo mudou, porém, com a projeção do filme “Ainda Estou Aqui”. Inspirado no romance de Marcelo, o longa dirigido por Walter Salles venceu, em fevereiro, o Oscar na categoria Melhor Filme Internacional e levou também o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza de 2024. Para completar a visibilidade em torno da obra, a protagonista Fernanda Torres, que vive Eunice Paiva, mãe de Marcelo, conquistou o Globo de Ouro de melhor atriz pelo papel.
Não era, definitivamente, o momento mais tranquilo para uma aposentadoria. Em meio ao fenômeno causado por “Ainda Estou Aqui”, o escritor publicou, em abril, “O Novo Agora”, cujo lançamento não fora programado para tal momento, mas, por essas coisas do acaso, calhou de nascer semanas após o Oscar. Por essas e outras, Marcelo Rubens Paiva teve de recalcular a rota, até pela necessidade de cumprir um intenso calendário de divulgação do novo livro no Brasil e no exterior.
Na semana passada, por exemplo, o escritor participou de eventos em quatro cidades portuguesas – Porto, Aveiro, Barcellos e Oeiras – e, de volta ao país, passaria por Belo Horizonte na última segunda-feira (14/7). O lançamento em BH, dentro do projeto Sempre um Papo, foi adiado sem data prevista, pois Marcelo quebrou a perna em um voo em Portugal.
“Acabei adiando minha aposentadoria. ‘O Novo Agora’ seria meu último livro, o fechamento de um ciclo. Com o filme, me vi obrigado a retomar uma atividade para suprir a demanda do debate que ele levantou, mas não tenho escrito nada, não tenho colocado posts em nenhum lugar. Só estou escrevendo letras de músicas e fazendo traduções”, comenta.
Quando fala em música, o autor se refere à banda de rock Lost in Translation. Ao lado de Fábio França, Arthur França, Rick Villas-Boas e Luli Villares, Marcelo toca gaita, canta, declama poemas e interpreta canções de Bob Dylan, Neil Young, Rolling Stones, Nina Simone, Billie Eilish e Britney Spears.
O grupo dá vazão ao lado musical do dramaturgo e é a retomada artística do Marcelo de 20 e poucos anos, quando mantinha uma banda em São Paulo e outra em Campinas, como conta nas páginas de “Feliz Ano Velho”. Com a aposentadoria da literatura em avaliação, a Lost In Translation tem ganhado mais espaço na vida de Marcelo e deve inclusive aparecer com futuros trabalhos autorais.
Memória
Logo no início de “O Novo Agora”, Marcelo Rubens Paiva diz que os escritores, muitas vezes, se sentem obrigados a escrever sobre algo que lhes aconteceu. “Fui forçado a escrever ‘Feliz Ano Velho’, ‘Ainda Estou Aqui’ e também ‘O Novo Agora’. Eu nem queria escrever sobre as coisas que escrevo, mas sou forçado por conta da urgência do tema”, explica.
No último volume dessa trilogia autobiográfica, Marcelo, entre o bom humor e a melancolia, apresenta em “O Novo Agora” suas reflexões sobre a paternidade (ele é pai de Sebastião e Joaquim), a pandemia e a crise no cenário político brasileiro marcada pela ascensão da extrema-direita e de setores ultraconservadores, além de encarar o processo que culminou no fim de seu casamento.
Assim como em “Feliz Ano Velho” e “Ainda Estou Aqui”, Marcelo Rubens Paiva constrói, a partir de experiências pessoais, um retrato mais amplo de um determinado período da história do país, alcançando o terreno coletivo. Segundo ele, os três livros guardam semelhanças: são o registro de uma época e de como superar problemas. Memória – individual e coletiva –, portanto, é um aspecto que conecta as três obras.
“Acho que todo escritor mexe com a memória”, avalia Marcelo, “porque ele tem esse papel de pensar, relembrar, discutir, encontrar saídas, outras formas de sobreviver, de superar”. Ele diz que sua escrita é “muito política” e que faz questão de registrar o período em que vivemos.
Ao fazer isso em obras autobiográficas, o autor também é o protagonista das situações relatadas, estando sujeito a interpretações e julgamentos diversos. “Literatura é algo que mexe muito com a gente. Escrever é se expor, mas me exponho um pouco mais”, acredita.
“Feliz Ano Velho, a Ópera”
Em seus mais de 40 anos de carreira, Marcelo Rubens Paiva teve diversas obras literárias adaptadas para o cinema e para a TV. A mais recente transposição aconteceu com “Feliz Ano Velho”, que, décadas atrás, já havia inspirado produções no teatro e no cinema, e agora serve de pano de fundo para a ópera da Orquestra Ouro Preto.
A montagem teve estreia no Rio de Janeiro, na Praia de Copacabana, em 28 de junho. O Palácio das Artes, em Belo Horizonte, recebe o espetáculo nos dias 22 e 23 de agosto. “Feliz Ano Velho, a Ópera” tem música e libreto de Tim Rescala, direção musical de Rodrigo Toffolo e direção cênica de Julliano Mendes.
“Nunca imaginei que ‘Feliz Ano Velho’ pudesse ganhar tantos formatos. Na época, escrevi quase como um diário bem informal. Minha questão era com a linguagem coloquial, provocativa, que falasse um pouco da minha juventude marcada pela revolução sexual, dos costumes. Minha geração foi formada por esse espírito de forma muito radical”, pontua.
Lei da Anistia
Com toda a repercussão gerada por “Ainda Estou Aqui”, o filme levantou vários debates sobre os crimes cometidos pela ditadura militar. No início do ano, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para analisar a aplicação da Lei da Anistia em casos de desaparecimento de pessoas na ditadura, como Rubens Paiva, pai de Marcelo, preso, torturado e assassinado em janeiro de 1971. O corpo do deputado cassado pela ditadura jamais foi encontrado.
Promulgada em 1979, ainda no regime militar, a Lei da Anistia, ao mesmo tempo em que absolveu presos políticos e permitiu a volta dos exilados, concedeu perdão aos agentes da repressão que cometeram torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores da ditadura. Segundo Marcelo Rubens Paiva, trata-se de uma lei antidemocrática, aprovada em um Congresso engessado, “com uma oposição morta, cassada ou no exílio e que está sobrevivendo por conta das pressões das Forças Armadas”.
Sobre a revisão da Lei da Anistia, o escritor é descrente: “Para mim, é óbvio que ela venha a ser questionada e derrubada, mas não é o que acontece. Fala-se sobre isso há muitas décadas, mas não somos nós quem fazemos a história”.