Em um terreiro de umbanda, Exu Capa Preta, no corpo de um sacerdote, conduziu Matheus Nachtergaele pela mão até o centro de uma roda. Matou uma pomba e derramou o seu sangue no chão. O ator sentiu um calafrio e começou a tremer, reação ansiada pelos presentes. "Era um pouco verdade, mas também um pouco mentira, como no teatro. Uma verdade poética, que auxilia a cerimônia e a catarse", diz ele.
Eram os anos 1990, e Nachtergaele ainda cursava a faculdade de dramaturgia. Naquela tarde, aprendeu as regras do jogo cênico, do qual era sujeito ativo e, ao mesmo tempo, parte coerente de um ritual. Este é o sentimento que espera de seus trabalhos, afirma o ator, aos 57 anos, enquanto gotas de suor escorriam de sua testa. O calor no Parque Novo Mundo, na periferia da zona norte de São Paulo, onde aconteciam as gravações da segunda temporada de "Cidade de Deus", era de 35ºC em novembro do ano passado.
Nos episódios, previstos para o segundo semestre deste ano, na HBO Max, Nachtergaele voltará a viver Sandro Cenoura. O traficante gente fina foi rival de Zé Pequeno no filme de Fernando Meirelles, que lançou as bases do bangue-bangue brasileiro no cinema deste século.
Não foi sua única reencarnação recente - ele voltou a ser João Grilo em "O Auto da Compadecida 2", personagem que coroou sua popularidade no Brasil inteiro na minissérie de Guel Arraes, em 1999. O longa se tornou a segunda maior bilheteria nacional pós-pandemia no começo do ano, e Nachtergaele disputa o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de melhor ator. No dia a dia, ele ainda aparece na TV como Poliana, fiel escudeiro de Raquel em "Vale Tudo".
Em comum, os três personagens são figuras de origem humilde, que não protagonizam as narrativas - pelo menos não de forma tradicional -, e ainda assim roubam a cena com seu carisma. É o caso do próprio João Grilo, sertanejo pobre que aplica pequenos golpes em Taperoá e divide as encrencas com Chicó, dupla eternizada por Selton Mello.
"Na TV e no cinema, fui dragado para representar o povo brasileiro", diz Nachtergaele, sobre a trajetória de 55 filmes e mais de 30 folhetins, em outra conversa, por videochamada, entre um trago e outro do cigarro. Os personagens sem um bom destino imediato, realidade próxima a grande parte dos brasileiros, se soma a traços físicos simpáticos e um humor onipresente.
Na série "Cine Holliúdy", mesmo o seu prefeito Olegário Maciel tinha certa graça, por mais terrível que fosse. "Tenho características de um homem muito simples, sem grandes atributos físicos, mas com uma verve que combina violência e delicadeza. Sempre fui palhaço, e a boa palhaçaria é trágica e faz chorar. Isso cabe bem para a representação de muitos tipos comuns no Brasil", afirma. São atributos compartilhados com grandes nomes populares da dramaturgia nacional, como Lima Duarte, Grande Otelo, Ary Fontoura e Paulo José.
Poliana, de "Vale Tudo", é mais um de seus coadjuvantes que conquistou um lugar ao sol. Dono de um bar no subúrbio carioca no início da trama, ele acolhe Raquel, vivida por Taís Araújo, que chega ao Rio de Janeiro com uma mão na frente e outra atrás após levar um golpe da própria filha, Maria de Fátima. Em uma trajetória com muitos baixos, Raquel e Poliana conseguem abrir um restaurante.
A dupla batalhadora dá a sensação déjà vu. Em uma toada parecida, Taís e Nachtergaele viveram Preta e Helinho em "Da Cor do Pecado", folhetim de 2004 e o primeiro de muitos trabalhos da atriz como protagonista na TV aberta.
Não ser sempre o centro das atenções, apesar da carreira extensa, não o incomoda. "Não tem personagem protagonista ou coadjuvante. Existem personagens de bons ou maus atores. Fico muito feliz quando, por estarem comigo, atores brilham. Não penso numa carreira no modelo hollywoodiano, 'ou o meu nome vem primeiro ou eu não vou'", afirma.
Um de seus sets favoritos ainda é o de "Cidade de Deus", tanto do filme quanto da série, porque grande parte do elenco é formado por atores no início de carreira ou não atores - pessoas que não estão viciadas no mercado ou no estrelismo da fama, segundo ele.
Nos tablados, porém, o ator coleciona protagonistas solitários. Nascido em uma família de classe média e ascendência belga na zona sul de São Paulo, foi na companhia Teatro da Vertigem, de método colaborativo, que ele iniciou a carreira.
Estreou "O Livro de Jó" em 1995, e ganhou seu primeiro Prêmio Shell e uma passagem só de ida para a televisão - ainda que nunca tenha deixado o teatro, como prova a temporada de "Molière" em 2023, peça que reapresenta desde o sucesso original, em 2018, e na qual ele encarna o célebre dramaturgo francês.
Na telinha, seu primeiro papel foi como a travesti Cintura Fina, na minissérie "Hilda Furacão", que quebrou tabus na virada do milênio ao mostrar Ana Paula Arósio, com sua beleza angelical, abandonar a vida burguesa para se prostituir.
Em uma das cenas mais ousadas que gravou na época, Cintura Fina colocava a mão dentro da braguilha de um cliente para masturbá-lo. Os movimentos de vai e vem foram ao ar na TV aberta. "Havia um comando geral de libertação, para tratar de temas não usuais. Eu queria isso mesmo, fazer personagens corajosos", diz Nachtergaele.
Mesmo "Vale Tudo" era uma referência de coragem, lembra o ator. Quando foi ao ar em 1988, logo após a redemocratização do país, a novela desafiava as convenções da televisão com uma filmagem ousada - muitas cenas na mansão Roitman, por exemplo, eram iluminadas apenas pela luz das janelas - e com um roteiro que acusava a moral e os bons costumes para expor as desigualdades entre os bem nascidos e os menos afortunados no Brasil.
Hoje, porém, os tempos mudaram. "Existe uma censura nova na TV aberta, que não havia quando eu fiz 'Hilda Furacão'", diz o ator. "O Brasil se provou, de alguma forma, conservador. A emissora (Globo) optou por não apertar os parafusos mais incômodos para uma boa parte da população", diz Nachtergaele.
Se antes o impacto das telenovelas sobre o público era mais duradouro, hoje ele se dissipa rapidamente depois de alguns memes. "Os assuntos vêm à tona e somem na mesma velocidade estonteante. Os personagens duravam mais tempo. Eu ainda sou o João Grilo nas ruas", diz. No exterior, ele é Sandro Cenoura. No metrô de Paris, chegou a ser chamado de "carotte", ou cenoura, em francês.
Existem pontos positivos, porém. Nos novos folhetins, como o próprio remake de "Vale Tudo", os arquétipos dos personagens são menos engessados - mocinhos podem falhar, e vilões têm um lado humano. Ele comemora, também, a introdução de temas pouco explorados na TV, como acontece quando Poliana se descobre assexual.
"Atuar não é tão importante quanto a medicina, quanto a ciência, mas é muito importante para a sanidade de um povo. O ser humano precisa dos atores para se ver, para purgar, rir junto, conhecer os meandros do ser humano. E também para amar a diversidade e adquirir moralidades, porque cada história tem sua fábula moral. A televisão é onde a maioria do povo brasileiro tem acesso à arte, e fazer novela ainda é uma maneira muito viva de ser ator", diz.
O cinema, ele diz, ainda tem seus desafios pela frente. Além de uma crise nas bilheterias que só melhorou com "Minha Irmã e Eu" e "Ainda Estou Aqui", no ano passado, o país ainda deve regulamentar o streaming.
"Você vê a loucura quando um filme nosso chega no Oscar. Nós somos uma espécie de galpão fornecedor de matéria-prima e de mão de obra barata, para multinacional abrir filial aqui e produzir. Tem que ter muito peito para ser o Lula e aumentar o salário mínimo e fazer uma queda de braço com gente poderosa de fora", diz o ator.
Sua fala aconteceu apenas uma semana antes de Donald Trump impor uma taxação de 50% sobre produtos brasileiros. Ainda não se sabe como a medida pode afetar o mercado audiovisual, ou quais normas da lei da reciprocidade o governo brasileiro irá aplicar.
Também não é a primeira vez que Nachtergaele acompanha de perto a via-crúcis do cinema nacional. Afinal, ele foi figura praticamente onipresente em filmes da retomada, nos anos 1990 -somado a "Cidade de Deus", compôs o elenco de "O Que é Isso, Companheiro?", indicado ao Oscar em 1998, "Central do Brasil", "O Primeiro Dia" e "Bicho de Sete Cabeças". Também foi diretor em "A Festa da Menina Morta", aplaudido no Festival de Cannes de 2008.
Dirigir de novo não está em seus planos a curto prazo. "Tenho muita coisa para fazer como ator, e não tenho pressa. Os atores, muitas vezes, não são considerados autores. Mas se você puxar o fio de todos os personagens, você tem uma narrativa contada. Você fica vivo sendo ator", diz, satisfeito. Em breve, pretende sair de cena por um tempo - dar uma "paradinha", para lembrar o sentido das coisas.