Quando rasgou o céu da noite quente naquele domingo em Newport, no estado americano de Rhode Island, em 25 de julho de 1965, com sua voz metálica e desafiadora que se misturava ao som da guitarra elétrica pendurada em seu corpo franzino de 24 anos de idade, Bob Dylan atingiu a plateia com tamanha força que provocou uma ruptura em vários sentidos – musicais, estéticos, políticos e comportamentais – e os anos 1960 começaram, de fato, ali, em um palco de poucos metros quadrados.

Bastou Bob Dylan entoar os primeiros versos de “Maggie’s Farm”, acompanhado de uma poderosa banda – Barry Goldberg (piano/órgão) e três integrantes da Paul Butterfield Blues Band: Mike Bloomfield (guitarra), Jerome Arnold (baixo) e Sam Lay (bateria) – para tudo se transformar. Há exatos 60 anos, Dylan se apresentou com banda e guitarra elétrica ao vivo pela primeira vez. E não foi em um palco qualquer.

O Newport Folk Festival era, como ele bem sabia e onde havia estreado em 1963, o encontro mais importante da música folclórica estadunidense, reunindo, desde 1959, artistas, ativistas e entusiastas de uma tradição fundamentalmente acústica, completamente antagônica à música elétrica.

Milhares de pessoas haviam saído dos mais diversos lugares do Estados Unidos para ver Bob Dylan naquela noite. Em 1965, o poeta já havia sido alçado como o herói de uma geração que o escolhera como seu cantor de protesto de estimação e messiânico porta-bandeira de suas angústias e esperanças, o cara que simbolizava a luta pelos direitos civis e iria renovar a música folk, dando continuidade ao legado de Woody Guthrie, ícone do gênero e enorme influência para Dylan.

Os discos “The Freewheelin' Bob Dylan” (1963)”, com as faixas do quilate de “Blowin' in the Wind”, “Masters of War” e “A Hard Rain's a-Gonna Fall”, e “The Times They Are a-Changin'” (1964), que trazia “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “When the Ship Comes In”, “Only a Pawn in Their Game”, além da canção-título, envolveram Bob Dylan em uma aura mítica com a qual ele jamais quis caminhar. O incapturável, no entanto, queria tomar outros rumos.  

Em 1965, o compositor queria deixar a tradição folk para trás, assumindo a guitarra elétrica, instrumento que sempre o instigou – Dylan era um apaixonado por blues e rock ‘n’ roll –, mas era visto com desprezo pelos puristas do folk. A transição elétrica ficou evidente no álbum “Bringing It All Back Home”, de março de 1965, que já conta com algumas faixas nesse formato. Porém, faltava mostrar as novidades ao vivo.

Domingo, 25 de julho de 1965

Joan Baez, Mississippi John Hurt, Pete Seeger e Peter, Paul & Mary foram alguns dos artistas que passaram pela programação do Newport Folk Festival daquele ano. Última atração do último dia de evento, Bob Dylan subiu ao palco com seus novos parceiros. A expectativa do público estava toda direcionada ao autor de “Mr. Tambourine Man”.

“Ele estava vestido com uma jaqueta de couro que brilhava sob as luzes, e uma camisa salmão abotoada apertada no pescoço”, escreve Elijah Wald em “Dylan Elétrico – Do Folk ao Rock” (Editora Tordesilhas), livro que mergulha a fundo nessa história, inspirou a cinebiografia “Um Completo Desconhecido” (2024) e chegou ao mercado brasileiro em março deste ano.

“Seus jeans pretos eram justos e cobriam as botas de cowboy pretas, e sua guitarra era uma Stratocaster de corpo sólido com acabamento com dégradé de queimado de sol. As luzes o destacavam, sozinho, na frente e no centro, entre as sombras dos outros músicos na escuridão por trás”, continua Wald.

Após trocar algumas palavras com a banda, soprar a gaita e dedilhar sua guitarra, Bob Dylan se aproximou do microfone em meio à explosão sonora do quinteto e dos solos curtos de Mike Bloomfield para dar início à apresentação. “I ain't gonna work on Maggie's farm no more” (“Eu não vou mais trabalhar na fazenda da Maggie”), Dylan solta o primeiro verso, para depois de poucos segundos voltar ao microfone.

“Well, I wake in the morning, fold my hands and pray for rain/ I got a head full of ideas that are driving me insane/ It's a shame the way she makes me scrub the floor/ I ain't gonna work on Maggie's farm no more” (“Bem, eu acordo de manhã, cruzo as mãos e rezo para que chova/ Estou com a cabeça cheia de ideias que estão me deixando louco/ É uma pena o jeito que ela me faz esfregar o chão/ Eu não vou mais trabalhar na fazenda da Maggie”).  

Em “Dylan Elétrico”, Wald dá a exata dimensão de como os barulhentos cinco minutos de “Maggie’s Farm” impactaram, com a violência da colisão de um trem desgovernado em um muro de concreto, a chocada plateia, que se misturou entre aplausos e vaias – mais vaias que aplausos.

“‘Foi uma resposta muito emocional’, lembra Peter Bartis, agora um folclorista experiente, mas na época um garoto de quinze anos que mentiu para os pais e foi para Newport naquele dia de carona. ‘Algumas pessoas estavam chorando, elas estavam realmente assustadas. Eu meio que gostei, mas foi confuso’”, cita o escritor. 

“How does it feel?”

Ainda sob vaias e alguns aplausos, Dylan começa a tocar a novíssima “Like a Rolling Stone”, que havia sido lançada como single poucos dias antes do festival e ganhou a escalação de Al Kooper nos teclados no lugar de Barry Goldberg. “Once upon a time you dressed so fine, threw the bums a dime in your prime, didn't you?” (“Houve um tempo em que você se vestia muito bem, e jogava moedas para os mendigos no seu auge, não jogava?”), entoou Dylan pela primeira vez ao vivo para cerca de 17 mil pessoas perplexas.

A apresentação durou pouco mais de 30 minutos. Além de “Maggie’s Farm” e “Like a Rolling Stone”, uma das canções mais cruciais da história do rock, Dylan também mostrou ao público “Phantom Engineer”, que meses depois ganharia outro corpo e se transformaria em “It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”, uma das faixas do álbum “Highway 61 Revisited”, lançado um mês após o estrondo em Newport.  

Bob Dylan terminou sua aparição no festival sem a banda. Com violão e gaita, ele tocou “It’s All Over Now, Baby Blue” e “Mr. Tambourine Man” e foi muito aplaudido. Então Dylan deixa o palco onde escreveu um dos capítulos mais fascinantes da história da música popular no século XX.

O set de Dylan no Newport Folk Festival foi amplamente abordado na imprensa cultural nos dias seguintes ao evento, entre críticas positivas e negativas. Até hoje o episódio é cercado por lendas. Uma delas reza que Dylan chorou no palco após receber a enxurrada de vaias, mas outros juram que era só o suor que deslizava em seu rosto naquela noite quente.

Outra história – a melhor de todas – gira em torno de Pete Seeger. Algumas pessoas dizem que ele, chocado, disse que o barulho das guitarras era terrível e alguém precisava parar com aquilo e abaixar o volume. Há quem conte também que Seeger, nos bastidores, pegou um machado para cortar os cabos e parar a barulhada ele mesmo. “Os relatos são contraditórios e confusos”, afirma Elijah Wald em “Dylan Elétrico”.

Bob Dylan só voltou a pintar no Newport Folk Festival muitos anos depois – 37,  para ser preciso. Em 2002, o poeta fez um show de cerca de duas horas. Entre o formato acústico – “The Times They Are A-Changin’”, “Tangled Up In Blue”, “Desolation Row” “Mama, You Been On My Mind”, entre outras – e o elétrico, que incluiu “Positively 4th Street”, “Leopard-Skin Pill-Box Hat” e “Like A Rolling Stone”, ele tocou 19 canções. Vestia um colete preto sobre a camisa branca, usava barba falsa e uma longa peruca coberta por um chapéu branco de caubói.