No primeiro poema da antologia "Homem com Homem", Renato Negrão fala de um amor em que se beija "como quem bebe o sol". É uma coisa para ser vivida como uma tela "pintada toda fora da moldura".

Essa ideia norteia todo o livro, que reúne a obra de 21 poetas homossexuais brasileiros. São textos que vêm de fora da moldura, isto é, não correspondem àquilo que é chancelado pela sociedade conservadora.

O veterano escritor João Silvério Trevisan sugere no prefácio que tais amores --imprevistos, dissidentes, transgressores e veados, nas suas palavras-- passaram por um apagamento literário nas últimas décadas. Daí a proposta da antologia, organizada pelo poeta Ricardo Domeneck, de preservar esses poemas. É um arquivo de maneiras de ser que nem sempre são celebradas pelo cânone.

Talvez o mais esperado fosse que a antologia resgatasse autores mais consagrados, como Mário de Andrade, Roberto Piva e o próprio Trevisan, que aos 81 anos é um dos nomes icônicos dessa literatura. Em vez disso, Domeneck escolheu apenas poetas que estrearam no século 21, com textos mais recentes. A exceção é Renato Negrão, que aparece como uma espécie de ponte entre gerações.

O recorte é uma mensagem em si e aponta para a valorização de autores relativamente novos, alguns dos quais ainda estão se consolidando. Vale ressaltar que é essa a proposta da Ercolano, que estreou em 2023 prometendo resgatar obras escanteadas. Seu catálogo tem enfoque na literatura de língua francesa e naquela feita por autores homossexuais.

Na coletânea, é eloquente a variedade geográfica dos autores, fugindo do eixo Rio-São Paulo, que vem sendo desafiado. Há poetas de Minas Gerais, Pará, Bahia, Paraná, Mato Grosso e Rio Grande do Norte.

O erotismo é recorrente nos poemas --Negrão fala em um "amor penetrável" em um verso, Rafael Mantovani escreve sobre a vontade de suar "só pra que tomara queiram me lamber".

As palavras "pênis" e "sêmen" aparecem, com seus sinônimos mais populares, por todas as páginas da antologia. São acompanhadas de fotografias e colagens de nus artísticos, em uma intersecção poética.

Há também uma curiosa e bem-vinda reflexão sobre a pornografia. Otávio Campos escreve em um dos textos sobre como esses vídeos ensinam "o que é o sexo/ o que é o desejo/ qual o movimento". Parece ser, de alguma maneira, uma crítica ao mundo tantas vezes hipersexualizado dos homens que amam outros homens.

Mantovani fala, por sua vez, sobre os aplicativos de sexo que marcam as paqueras de hoje. O flerte ali, sugere, é como a tarefa de Penélope, personagem da "Odisseia" que esperava Ulisses voltar para casa. "Mas Penélope pelo menos/ sabia quem era o homem" que aguardava.

Dito isso, os poemas não versam apenas sobre desejo e sexo. Eleazar Carrias trata, por exemplo, da religião. Um de seus textos diz que "Deus não resiste e perdoa/ enternecido/ de eu não sentir/ nenhuma culpa".

Já Domeneck toca a experiência corriqueira do homem gay que se pergunta por que está fora da moldura. "Ouvi com atenção/ a fórmula/ sobre pai ausente e mãe/ dominante a gerar rainhas/ de paus."

A antologia segue a ordem cronológica do nascimento dos autores, começando por Negrão, de 1968, e chegando até Wallace Prado, de 2000. É em alguns dos últimos que aparecem alguns dos textos mais inventivos, caso de Caetano Romão, que fala de um homem usando um caule de bananeira para se masturbar. São dele os inesperados versos "dava gosto/ plantar um caroço/ de jabuticaba/ no olho do meu namorado".

Em toda essa variedade, Trevisan encontra denominadores comuns em seu prefácio. Aponta, por exemplo, para os versos com estruturas "contorcidas feito desmunhecação" e para o vocabulário "afrescalhado". Sugere, apesar disso, que não existe "um padrão bicha de poetizar".

Para voltar ao poema de Negrão, talvez o que una os autores da antologia seja o fato de pintarem fora da tela, bem além da moldura.

Homem com Homem: Poesia Homoerótica Brasileira no Século 21
Preço: R$ 98 (352 págs.)
Editora: Ercolano
Organização: Ricardo Domeneck
Avaliação: Excelente