BONITO - Depois de estrear em longa-metragem com uma homenagem ao marido em "Babenco - Alguém tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou" (2020), sobre o cineasta Hector Babenco, um dos grandes nomes do cinema mundial que faleceu em 2016 de uma parada cardiorrespiratória, após anos lutando contra um câncer linfático, Bárbara Paz partiu para outro trabalho marcado por amor e luto em"Rua do Pescador, nº 6", exibido na noite de domingo (27) dentro da programação do 3º Bonito CineSur, que está sendo realizado na cidade sul-mato-grossense.

O documentário foca a catástrofe provocada pelas fortes chuvas no Rio Grande do Sul em abril e maio do ano passado, que praticamente paralisou o estado e deixou milhares de pessoas desabrigadas. Bárbara é gaúcha, nascida em Campo Bom, e não pensou duas vezes antes de convocar, às pressas, uma pequena equipe para registrar imagens emocionantes de moradores da ilha da Pintada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, que perderam praticamente tudo o que tinham, vendo pertences transformados num grande amontoado de lixo.

"Foi um documentário de guerrilha. A gente não tinha verba, parceiro. Estava todo mundo ilhado em Porto Alegre e eu estava fora, no Rio de Janeiro. Entrei em contato com A Daniela Mazzilii, minha produtora, que é de Porto Alegre, e ela juntou uma equipe de seis pessoas, como fotógrafo e técnico de som. Eram pessoas que também estavam desempregadas, sem trabalho por causa das enchentes. Todo mundo topou fazer sem dinheiro e ir para a rua", registra Bárbara, que viajou de carro do Rio até a capital gaúcha, acompanhada de seu cachorro.

Na maior parte do tempo, a equipe precisou roupas especais de proteção, já que as águas estavam contaminadas. "Foi uma operação de guerrilha, mas com muito afeto no coração. Estávamos muito em choque com tudo que estava acontecendo e queríamos fazer algo Eu precisava registrar, senti que era um filme urgente, um documento que ficará para a História, para sempre. Até porque a gente não quer que aconteça de novo, apesar de continuar acontecendo. Só em 2024 foram 150 desastres climáticos no mundo", diz a diretora, que define o filme como um ensaio sobre a tragédia.

Apesar desse conceito, ela resolveu fazer tudo em preto e branco. "Tragedia não tem cor. Com o P/B a gente faz um distanciamento até poder enxergar por um outro prisma essa catástrofe. O jornalismo cobriu muito bem tudo, mas a gente chega lá é muito maior. É quando a gente vai para o humano. Eu quis fazer um filme de dentro para fora; Queria retratá-los (as vítimas das enchentes), e não que eles falassem", registra Bárbara, que usou imagens de uma enchente anterior ocorrida em 1941, na mesma região, com dimensões muito semelhantes.

"Quando eu vi esse material de arquivo, era igual, com animais em cima de telhados, as pessoas em abrigos. Só mudavam as vestimentas e os telhados das casas.  Apesar da última ter sido maior, era uma coisa assustadoramente igual. Era uma tragédia anunciada", lamenta. Bárbara observa que construiu as suas imagens como uma poema sobre o desastre, "uma costura que você precisa grifar e botar legenda, já que as imagens estão falando". A montagem, segundo ela, leva o espectador, a "entrar" naquela situação, compadecendo de um cavalo inerte sobre um telhado.

Embora se restrinja às imagens da tragédia, quando o estado gaúcho ainda se recupera de suas perdas, "Rua do Pescador, nº 6" deixa uma mensagem de esperança ao final, ao mostrar o sol se refletindo na água de um rio. "Tem que haver esperança, né? Como é que a gente sobrevive sem acreditar que as coisas possam mudar? Como aquele povo pode acordar no dia seguinte sem ter esperança? As coisas vão secar. Eu acompanhei esse momento do sol secando o lixo, que não é lixo, mas sim memórias", assinala Bárbara Paz.

A cineasta ficou impressionada com a quantidade de pertences perdidos ou lixo acumulado nas ruas. "Nenhum diretor de arte faria aquilo que a Natureza produziu. É uma lavagem em que você olha e vê uma montagem surrealista. É difícil imaginar que seja verdade. Acham que universo paralelo, mas não é", salienta. Ela explica que teve que fazer um recorte, na impossibilidade de contar o todo. "Primeiro, porque não tinha dinheiro. Segundo, porque é tanto para falar que tive fazer um retrato. Escolhi um lugar em que estou habitando nas imagens, na forma de contar".

Um nome que chama a atenção nos créditos é o do diretor mineiro Cao Guimarães, que aparece como consultor de roteiro. Parceiro de Bárbara desde o longa sobre Babenco, sera era a primeira escolha para o trabalho de montagem, mas, na época, estava envolvido em projetos pessoais. "O Cao é meu parceirão. Ele foi o primeiro a ver as imagens. Ele ia montar comigo, mas estava cheio de coisas e não conseguia se debruçar e eu tinha urgência, porque eu não queria deixar passar um ano. Eu queria lançar exatamente um ano após a enchente", explica.

"O Cao ficou como meu consultor, como sempre é. A gente sempre conversa, temos um diálogo artístico. Isso é muito bonito, porque precisamos ter esses diálogos com pessoas que a gente admira e com aqueles que nos admira. Eu mandava os cortes para ele e a gente debatia. Ele sempre esteve ali comigo, dando o brilho dele. O Cao viu esse corte final e gosta muito do filme", elogia a realizadora, que, em poucos dias, apresentará o filme em sua terra natal, durante o Festival de Cinema de Gramado, que acontecerá de 15 a 23 de agosto.


(*) O repórter viajou a convite da organização do Bonito CineSur