Desde a encenação de “La Traviata”, um clássico da ópera italiana que marcou a estreia da Fundação Clóvis Salgado (FCS) no formato, em 1971, quase uma centena de produções passaram e deixaram legado no Centro Técnico de Produção e Formação (CTPF) – um espaço destinado à confecção e salvaguarda do acervo das produções realizadas pelos corpos artísticos do Palácio das Artes. Nesses quase 55 anos, algumas montagens exigiram que todo figurino precisasse ser criado do zero, mas outras tantas, à medida que o acervo crescia, seguiram um caminho diferente, priorizando o reuso de peças disponíveis. “Temos dois andares de roupa, daqui a pouco não cabe mais”, brinca Cláudia Malta, diretora artística da fundação, que geriu a parte de produção do CTPF entre 2005 e 2009.

Além da economia de espaço, a orientação tem laço na sustentabilidade e dá o tom, por exemplo, da figuração de parte do coral da ópera “Cavalleria Rusticana”, que estreia no dia 6 de agosto, quando coleções antigas, devidamente ajustadas para a nova empreitada, vão deixar as araras para, novamente, ganhar vida no palco. 

Para que essa dinâmica funcione, complementa Cláudia, ter todo material devidamente mapeado é essencial. Ao mesmo tempo, pondera, está sempre no radar de toda equipe o respeito ao passado – o que fica evidente no tratamento dado aos figurinos de solistas, que levam o nome do cantor original e só sofrem alterações discretas quando a obra é remontada, enquanto os trajes de outros personagens podem sofrer intervenções mais aparentes.

A vocação de reuso vai além dos próprios espetáculos. Parte do acervo, preservado em um discreto prédio de três andares localizado na avenida dos Andradas, ao lado da Serraria Souza Pinto, é alugada para cinema, produtoras de eventos, festivais de Carnaval e até por prefeituras de cidades históricas. Recentemente, peças foram parar no set do filme “Maria: A Rainha Louca”, de Elza Cataldo, que, atualmente em fase de pós-produção, foi apresentado no Marché du Film do Festival de Cannes, em maio deste ano.

Larissa Martins nos corredores do CTPF | Crédito: Fred Magno/O Tempo

Esse entra e sai envolve um processo logístico previamente sistematizado. “Preparar a saída é um ritual. A roupa sai daqui higienizada, embalada e etiquetada e, quando volta, esse mesmo processo é repetido”, descreve Larissa Martins, coordenadora-geral de projetos Appa em atendimento a FCS. Ela ainda frisa que todo item emprestado tem prazo determinado para devolução e passa por vistoria minuciosa e, quando necessário, volta para a máquina de costura para reparos.

Bastidores de alta voltagem

Se a rotina no CTPF geralmente é silenciosa, o clima muda radicalmente quando é aberta a temporada de ópera. Nessa época, é frenética a busca e adequação de alguns figurinos, a criação de outros tantos. “Precisamos estar prontos para receber equipes inteiras de costureiras, que vão ficar aqui, em média, por três meses, quando todo figurino precisa ser criado”, aponta Larissa. E esse corre-corre se estende à coxia do Grande Teatro Palácio das Artes, uma vez que trocas de figurinos são comuns a muitos desses espetáculos. Em alguns o desafio é especialmente hercúleo.

“‘Viúva Alegre’ teve troca recorde: uma solista mudava de roupa em 30 segundos”, recorda a figurinista Marcela Mor, que compara o procedimento a um “pit stop de Fórmula 1”, exigindo que quatro pessoas aguardem nos bastidores com saias já abertas, corpetes afrouxados e sapatos desamarrados. “Um tira, outro veste, outro fecha a roupa enquanto ela entra em cena”, descreve, rindo do caos coreografado.

Em “Cavalleria Rusticana”, o desafio é diferente e envolve menos pressa e mais maturação. Na peça, que marca a estreia de Marcela como figurinista principal – até então ela havia atuado como assistente –, a exigência é transmitir em tecido a psicologia dos personagens. “Alfio é rústico, anda a cavalo. O figurino carrega esse jeito, tem aparência mais gasta, mais suja. Já Turiddu é garboso, e vai usar itens mais elegantes. Lola precisa parecer mais sedutora, enquanto Santuzza é recatada, e vai usar peças mais contidas”, enumera a figurinista.

Parte da equipe do CTPF trabalhando na montagem de figurinos de 'Cavalleria Rusticana', nova ópera da FCS | Crédito: Fred Magno/O Tempo

Para chegar ao tom exato, vasculhou araras históricas e, em algumas peças, propôs intervenções. Mais que o cuidado estético, há outros detalhes que precisam ser perseguidos ao se pensar em roupas para o palco. Para começar, nada pode atrapalhar a voz ou o movimento. “A gola não pode prender o gogó, as mangas não podem limitar o movimento dos braços”, assinala Cláudia, explicando as folgas secretas e a preferência por tecidos mais leves, que facilitem o deslocamento em cena.

Do manual às aulas práticas

Em 2023, a Appa – instituição parceira da Fundação Clóvis Salgado – publicou um manual de gestão para padronizar todos os procedimentos no CTPF, passando pela higienização, catalogação, locação e manutenção dos itens. “Consultamos especialistas e memórias de equipes antigas para consolidar as melhores práticas”, conta Larissa Martins. O documento exige, por exemplo, que todo figurino seja checado em ciclos, usado ou não, para evitar mofo, traças e a temida praga dos micróbios e insetos atraídos por substâncias, como o café, usado para tingir figurinos da ópera “Aleijadinho”, de 2022.

Além dessa sistematização, a gestora destaca que o lugar também virou sala de aula, com alunos do Cefart frequentando o espaço para aprender alfaiataria, modelagem e envelhecimento têxtil. “É o único curso em Belo Horizonte que mergulha nas especificidades da tecnologia da cena”, diz Janaína Mendes, coordenadora de projetos Appa do CTPF. Ali, estudantes descobrem como construir um colete vitoriano, tingir com ferrugem ou fabricar um chapéu bicórneo do zero – habilidades raras numa indústria que exige inventar quando o mercado não oferece.

Alguns acabam integrando produções profissionais. Foi assim com a própria Marcela Mor, que começou como estagiária voluntária: “Ficava atrás do Raul Belém Machado: ‘Eu preciso trabalhar aqui!’”, recorda, citando o cenógrafo, figurinista e arquiteto, com especialidade em cenotécnica, que não apenas atuou no CTPF como criou boa parte das metodologias de conservação das peças.

Vale dizer, as tecnologias desenvolvidas por ele, depois aprimoradas e catalogadas, já foram objeto de estudo até fora do país. É o que conta Cláudia Malta, que em 2009 visitou o Centro de Tecnologia do Espetáculo, em Madri, e ficou surpresa ao ouvir que o sistema mineiro – com corredores indexados e uso de vodca na higienização – era mais eficiente que o espanhol. “Eles ficaram impressionados”, conta, orgulhosa, lembrando ainda que o além das roupas de espetáculos, o acervo guarda histórias de ofício, moda e arte, com peças doadas por grifes, incluindo vestidos que cruzaram desfiles mineiros antes de ganhar palco em algum espetáculo.

O reconhecimento não vem só de fora. “Quando expusemos algumas peças no foyer do Palácio (em 2023), o público ficou chocado com a ostentação dos figurinos”, lembra Larissa, recordando do encantamento do público, que via, pela primeira vez, as peças em detalhes, de perto – e não perderam a chance de fazer selfies com elas ao fundo. Os modelos que fizeram mais sucesso, reconhece, foram os de época, cheios de canutilhos.