Há muitos pontos em comum entre "A Matéria Noturna", filme anterior do diretor capixaba Bernard Lessa, e seu mais recente longa-metragem, "O Deserto de Akin", que chega ao circuito comercial nesta quinta-feira (31). O principal deles é a presença de personagens negros imigrantes que estabelecem um dilema entre ficar no Brasil ou dar continuidade à vida nômade.
"O ser humano no mundo é diaspórico. A modernidade o exilou do ritmo que o poderia conectar ao mundo. Neste sentido, eu me vinculo ao pensamento do (filósofo e sociólogo alemão Walter) Benjamin, que coloca a modernidade e o ritmo fabril e dos trens desaguando neste mundo contemporâneo que a gente tem, virtual, em que se começa a separar o homem da terra, da existência", analisa Lessa.
Em "O Deserto de Akin", acompanhamos o personagem do título, interpretado por Reynier Morales, um médico cubano que vem para o Brasil a partir do programa "Mais Médicos", instituído no governo de Dilma Rousseff em 2013 para suprir a carência de atenção básica nos municípios do interior e nas periferias dos grandes centros do país. Mais de 18 mil médicos vindos do exterior foram inscritos.
"Filmo personagens negros no Brasil porque eles trazem em si a questão do exílio, da busca por pertencimento. Mais do que isso, é uma questão humana. Como nos filmes há uma tentativa de dizer muito através da imagem, eu trabalhei até aqui majoritariamente com atores negros, porque eles carregam, além da própria imagem da negritude no Ocidente, essa busca, que não é mais de todo possível", observa.
Enviado para o litoral do Espírito Santo, Akin acompanha a mudança dos ventos políticos no Brasil em 2018 e, até chegar à eleição de Jair Bolsonaro e o fim do programa, o filme de Lessa registra a adaptação do personagem à cultura e às pessoas, relacionando-se com uma professora, Erika (Ana Flávia Cavalcanti), que faz de tudo para ele não retornar ao país natal.
Bernard Lessa conta que, na exibição no World Black Film Festival, em Nova Jérsei, nos Estados Unidos o longa teve grande presença de brasileiros. "Conversando com eles, ficou muito claro que o lugar do imigrante é um não-lugar, entre a saudade de casa - não se sentindo totalmente pertencente àquele espaço, independentemente do tempo de moradia no estrangeiro - e a ideia de casa, de pertencimento, que não existe mais", analisa.
"Ela existe enquanto saudade, mas quando você volta aquele lugar idealizado não existe mais. Isso se vincula muito à ideia da humanidade no contemporâneo. A gente vive esse momento de busca de experiência, do estar no mundo. A gente quer muito a presença. Hoje em dia é muito sentido e pouca presença, ainda mais com o artefatos que cada vez mais nos distanciam, como celulares, computadores, as multitelas", destaca.
Em "A Matéria Noturna”, temos o encontro entre Jaiane, uma mulher negra que trabalha como motorista de aplicativo e canta numa roda de samba, e o marinheiro moçambicano Aissa, que precisa ficar alguns dias na cidade de Vitória por causa de um problema técnico em seu navio. "Quando comecei a escrever os projetos, eu não percebi imediatamente uma relação, mas depois vi que estavam neles questões que são caras para mim".
"Nesse momento em que a gente vive um ritmo tão alucinado, os personagens buscam encontrar um lugar de pertencimento. Essa é a grande questão da humanidade no mundo contemporâneo. Eu vejo essa questão dos personagens em trânsito como um reflexo de como eu me vejo. É algo não planejado mas que acaba acontecendo. Escrevo o roteiro e, quando vejo, no final tem a questão de ficar ou partir", reflete o diretor.