Ricardo Corrêa entrou na redação da revista "Placar", em São Paulo, como office-boy. Tinha 14 anos e, precisando trabalhar para ajudar em casa, foi levado pelo padrinho. O teste com o editor Juca Kfouri se resumiu a uma pergunta: "Para qual time você torce?". Quando o jornalista, um corintiano declarado, ouviu o nome do Palmeiras, jogou um balde de água fria no futuro fotógrafo. "Ele disse que, para eu ter futuro lá, precisava trocar de time. Eu respondi que preferiria ir embora. Então ele falou 'Gostei de você. Tem personalidade'. E me contratou", registra Corrêa, mais de quatro décadas depois da entrevista. Ele assina com Sérgio Xavier, o documentário "Placar: a Revista Militante", uma das estreias desta quinta-feira nos cinemas.
Com a sorte de quem viu de perto boa parte da história da maior revista de futebol do Brasil, lançada em 1971, o cineasta mergulhou num lado pouco divulgado da publicação, que deu um drible memorável na censura das décadas de 70 e 80, época em que o país ainda vivia os anos de chumbo, ao abordar assuntos políticos em suas páginas. "Quando iniciamos, ainda não era o viés central do filme, já que a 'Placar' militava também pelo futebol-arte, por exemplo. Mas logo vimos,. com as entrevistas, que esse foi o grande legado da revista: ela tinha uma importância na formação política do jornalismo naquele período da ditadura e durante a Democracia Corintiana", afirma Corrêa, ao lembrar a imagem de Pelé vestido com a camisa das Diretas-Já.
A chamada Democracia Corintiana, que reuniu jogadores como Casagrande e Sócrates, ídolos no time paulista, pôs em evidência a força do grupo em todas as questões relacionadas ao futebol, especialmente fora das quatro linhas, de contratos à liberdade de expressão. Na redação da "Placar", ganharam um aliado de primeira hora. "Ela lutou pela democracia, pela liberdade e pelo futebol brasileiro. Ela foi uma revista militante, o que surpreende muita gente", observa Corrêa, citando uma das pernas do tripé sobre o qual o documentário se estabelece. "Tem a memória afetiva, quando mostramos que, em algum momento, um garoto lá nos anos 70, 80 ou 90 cruzou com a revista numa fase importante da vida, que é a adolescência, além da paixão que é o futebol".
Mas o filme está longe de ficar apenas lançando confete, abordando desde a obsessão editorial em colocar alguns jogadores num pedestal até a fase "sexo, futebol e rock'n'roll", quando recheou a publicação com mulheres com pouca roupa. "Apesar de o documentário trazer um legado importante da revista, eu queria mostrar outras visões. Muita gente que trabalhava na 'Placar', como eu mesmo, fazia essa autocrítica, algo que a gente aprendeu na essência do jornalismo que a revista fazia. A revista sempre foi feita por muitos bons jornalistas. E ouvir mais lados faz parte da história e tinham críticas à própria postura da revista. Entre as questões estava a pergunta se a revista devia só anunciar ou fazer parte da Democracia Corintiana", destaca.
"Aí tem o argumento do Juca, que é forte, de que se tinha que escolher um lado naquele período (da ditadura). E tem outros argumentos, como o do PVC (Paulo Vinícius Coelho, atualmente comentarista nos jogos transmitidos pela Prime Video), que achava que aquilo era panfletário, que tinha que ser mais neutro. O Juca mesmo diz que não faria mais isso hoje", salienta Ricardo Corrêa, para quem Kfouri era o formador de uma geração de jornalistas e um ser político na essência, com lógicas muito próprias, sempre se deixando conduzir pela ética. "O Juca pautou muito a revista por essa busca do lado certo, o que não quer dizer que ele não tenha escorregado, mas não em suas convicções", comenta.
Para o realizador, que entrevistou nomes como Pelé, Zico, Afonsinho, a "Placar", mesmo depois de sofrer uma mudança editorial, continua fazendo o jornalismo que defendia em seus primórdios. "Mas hoje o futebol está mais organizado. Há menos brigas para comprar do que naquela época", diz Corrêa, citando a denúncia sobre a manipulação da loteria esportiva, revelado em reportagem publicada em outubro de 1982 e ganhadora do Prêmio Esso de Jornalismo. "Está também mais boleira hoje em dia. A gente trouxe, por exemplo, o futebol feminino, que não fazia parte das questões do dia a dia das publicações. Hoje a revista tem menos causas para defender e está mais focada neste futebolzão no Brasil, que tem um business grande", analisa.