Quando os primeiros acordes de uma trilha inédita soam pela sala de ensaio do Grupo Corpo, não é raro que os compositores convidados para acompanhar a execução experimentem algo próximo de um arrebatamento. Uma cena que, ao longo de 50 anos, se repetiu dezenas de vezes, sempre que um novo compositor era chamado a colaborar com a companhia mineira de dança contemporânea. No hall de parceiros, estão desde aqueles ligados ao erudito até nomes fundamentais da música popular brasileira, passando também pelo reggae, rock, jazz e outras tantas vertentes musicais. 

Toda essa diversidade – uma condição necessária para alimentar e renovar o pensamento coreográfico do Corpo, mantendo a companhia sempre porosa a influências externas –, curiosamente, encontra um sentido de unicidade quando o tema é o processo criativo, com os depoimentos de boa parte deles convergindo mais ou menos para um mesmo roteiro, desde o inesperado convite até o maravilhamento diante da conclusão dos trabalhos.

Os relatos, quase sempre, seguem um mesmo percurso: começa com o espanto diante do convite inesperado; vem, em seguida, o trabalho intenso, que exige lidar com uma liberdade quase assustadora – os temas costumam ser propostos pelos próprios compositores, sem direcionamento prévio. Depois, a apreensão diante da expectativa de ver a música ganhar forma no corpo dos bailarinos – o que é novo para muitos deles, sem experiência anterior com balé. E, por fim, o júbilo, não só pela sensação de dever cumprido, mas também pelo encantamento perante da materialização daquela criação – e “encantamento”, neste caso, adquire sentido para além do maravilhamento, com aquela tônica mágica de ver uma entidade viva ser transformada noutra coisa.

Esse script vem sendo cumprido à risca por Clarice Assad, autora de “(R)evolution”, trilha de “Piracema”, novo espetáculo do Grupo Corpo, que estreia nesta quarta-feira (13/8) em São Paulo, chegando a Belo Horizonte no dia 27 de agosto. Carioca radicada entre os Estados Unidos e a França, filha do violonista Sérgio Assad e sobrinha da cantora Badi Assad, Clarice é a primeira mulher a assinar sozinha a trilha de um balé da companhia – antes dela, Sandra Peres, com o Palavra Cantada, e Juçara Marçal, com o Metá Metá, já trabalharam na criação de uma trilha para a companhia, mas com seus parceiros de banda.

A compositora Clarice Assad, responsável pela trilha de 'Piracema' | Crédito: Rodrigo Assad/Divulgação
A compositora Clarice Assad, responsável pela trilha de 'Piracema' | Crédito: Rodrigo Assad/Divulgação

O convite, para Clarice, veio de forma despretensiosa, por meio do amigo Arthur Nestrovski, e a pegou desprevenida. “Veio com um simples: ‘Você tem interesse em fazer algo assim?’. Eu nunca tinha feito nada parecido. Sempre trabalhei com música de concerto. Nunca tinha composto para dança. Mas aceitei, porque gosto de experimentar”, conta.

Logo no início, recebeu uma pilha de vídeos dos espetáculos anteriores do grupo. “Alguns eu já conhecia, outros não. Assisti a um documentário em que os compositores falavam sobre o processo criativo e todos diziam a mesma coisa: dá medo. O Corpo não diz o que quer. Diz que você tem carta branca – e isso é mais difícil do que ter uma direção”, relata. A liberdade absoluta exigia, paradoxalmente, um alinhamento com a identidade muito particular do grupo. “Demora um pouco até a gente se encontrar”, reconhece.

‘Um dos maiores arrebatamentos que já tive’

Durante um ano inteiro, Clarice participou de videoconferências regulares com a equipe. “Muitas vezes eu pensava: ‘Não vai dar certo. Estou no caminho errado’. A Michele (Deslandes, produtora executiva do grupo) me disse: ‘Fazer trilha é um parto’. E tinha toda razão”, assinala. Agora, na véspera da estreia, Clarice ainda vive a ansiedade da última etapa: ver sua música materializada em movimento: “Acho que a última vez que fiquei tão nervosa foi na estreia de uma ópera minha. É um nervoso bom, porque depois que faço minha parte, não tenho controle sobre o que vai acontecer.”

A julgar pelos relatos de outros parceiros, é provável que essa última experiência seja especialmente impactante. Lenine, por exemplo, descreve esse momento como “um dos maiores arrebatamentos que já tive”. “Foi lindo assistir o relevo que o Rodrigo (Pederneiras, coreógrafo do grupo há cerca de 40 anos) criou com aqueles corpos tão lindos, plásticos e elásticos a partir de uma música que eu tinha feito. Foi muito novo aquele sentimento”, assinala, fazendo menção à sua primeira parceria com o grupo, o balé “Breu”, de 2007.

O espetáculo 'Breu', primeira parceria de Lenine com o Grupo Corpo
O espetáculo 'Breu', primeira parceria de Lenine com o Grupo Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

Ele recorda que recebeu com surpresa o convite inaugural e confessa ter se assustado diante do desafio de compor 40 minutos de trilha inédita sem mostrar nada até que achasse oportuno. “Achei uma coisa ousada, me causou um misto de surpresa, desejo, medo”, cita.

Hoje, Lenine reconhece em “Breu” um trabalho tão importante que mudou sua minha maneira de fazer álbuns. “Antes, quando decidia gravar um novo disco, eu já tinha boa parte das músicas feitas. Então, era mais uma coletânea”, classifica. “Mas, depois disso, tudo mudou. Lembro que entrei no estúdio sem saber para onde ir, só levando comigo uma coleção de brinquedos sonoros que fiz com meus três filhos. Eu não sabia muito bem para onde ir, mas tinha que gravar. Então gravava, voltava para casa, criava mais, e gravava no dia seguinte. Nessa dinâmica, em vez de um amontoado de canções, o resultado foi a criação de uma única música em capítulos, como os de um romance. E eu adotei esse método de criação a partir de então”, confessa.

‘Um constante fazer coletivo’

Na segunda colaboração com a companhia, em “Triz”, de 2013, Lenine avalia que já tinha mais intimidade com o processo. “A gente já falava uma língua comum. Mas o primeiro encontro foi tudo no escuro.” Agora, ao falar dos 50 anos do grupo, Lenine é só elogios: “Esse coletivo é uma das expressões mais importantes da cultura brasileira. Eu só desejo permanência, perenidade e o bem para esse corpo tão jovem.”

Quem também viu sua relação com o Corpo evoluir ao longo das décadas foi José Miguel Wisnik. Desde que recebeu o convite, em 1993, para criar a trilha de “Nazareth”, ele nunca mais se desligou da companhia. “Aquilo criou um vínculo. De lá para cá, foram várias trilhas: com Tom Zé, Caetano Veloso, Carlos Núñez. Eles sempre me convidavam com outro alguém, em um constante fazer coletivo com uma música que nasce dialogal”, reflete.

'Nazareth', de 1993, marcou o início da profícua colaboração de José Miguel Wisnik com a companhia mineira | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação
'Nazareth', de 1993, marcou o início da profícua colaboração de José Miguel Wisnik com a companhia mineira | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

Wisnik destaca a inteligência cênica do grupo, que não apenas executa coreografias, mas propõe um pensamento sobre o que cada elemento do espetáculo significa. “Não é só compor uma música e entregar. Cada espetáculo tem uma malha fina em que tudo – coreografia, luz, figurino – se conecta”, avalia. Ele menciona “Parabelo”, feito em parceria com Tom Zé, como exemplo. A peça começa e termina com o mesmo som: um “tum”, percussão feita na boca que remete a um pilão. “Isso cria uma unidade. A trilha bebe da secura da música nordestina, como carne seca com farinha de mandioca”, analisa, recorrendo a uma descrição do seu parceiro de criação, Tom Zé.

Vale dizer, como de costume, o Corpo realiza duas peças nesta temporada de apresentações, incluindo justamente “Parabelo” no repertório, além da inédita “Piracema”.

Para o compositor, a força do grupo está também na resistência. “Sobreviver 50 anos fazendo algo desta qualidade, sem concessões, é um feito artístico e político. A bilheteria muitas vezes não paga. É preciso garra para sustentar tudo isso. O Grupo Corpo se tornou uma referência da cultura brasileira em uma arte que, antes, não era popular, mas que eles ajudaram a tornar parte do repertório do público”, exalta.

‘Veja como é a força do acaso’

Ao contrário dos outros compositores, como José Miguel Wisnik, que mesmo surpreendido frisa não ter motivos para não aceitar o convite do Corpo de primeira, João Bosco foi mais arredio e só disse o “sim” fundamental para a criação de “Benguelê”, de 1998, após alguma insistência. 

'Benguelê' teve trilha criada por João Bosco | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação
'Benguelê' teve trilha criada por João Bosco | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

“Quando Paulo (Pederneiras, diretor artístico da companhia) e Rodrigo me procuraram, em 1996, recusei, porque achava que não tinha prática suficiente”, comenta. “Só aceitei, no ano seguinte, depois de uma conversa, quando eles explicaram que queriam que eu preparasse uma trilha que dialogasse com a sonoridade que eu já vinha trabalhando – que tem muito a ver com o mundo afrobrasileiro e que já está presente em meu primeiro disco, de 1973, arranjado pelo Rogério Duprat e pelo Luizinho Eça, ganhando uma definição mais contundente em outro trabalho, o ‘Cabeça de Nego’, que lancei em 1986, e fica ainda mais explícito no ‘As Mil e Uma Aldeias’, de 1997”, rememora. 

Entusiasmado pela capacidade de leitura musical da dupla, João Bosco pediu que os Pederneiras o acompanhassem no estúdio na hora da gravação. “Eu queria eles balizando a caminhada dessa gravação, apontando que caminhos poderia explorar mais, para onde ir, que rumos evitar”, conta, inteirando que dirigiu toda sua música para essa expressão corporal – “coisa que, para mim, não foi difícil, porque meu trabalho, implicitamente, já dialogava com essa proposta”, aponta.

Enquanto faz votos pelos próximos 50 anos do Corpo, João Bosco retoma uma memória anterior à fundação da companhia, quando, em um encontro fortuito em Ouro Preto, nos anos 1970, conheceu os irmãos Pederneiras e ouviu falar do sonho deles de criar uma companhia de dança. “Eu estudava engenharia e frequentava a casa do (artista visual) Scliar. Foi ele quem me apresentou ao Paulo e ao Rodrigo, em uma feijoada. Lembro que ele chamava todo mundo de ‘filhotinho’. Nos juntou e disse: ‘Eles são dançarinos; esse aqui gosta de música’. Veja como é a força do acaso”, afiança.

Vestindo o Corpo

As colaborações do Corpo não se limitam às trilhas e foi também pela força da ventura que os caminhos de Ronaldo Fraga se cruzaram com os da companhia. Em 2002, o estilista foi chamado de última hora para substituir a figurinista Freusa Zechmeister no espetáculo “Santagustin” – a arquiteta e designer de figurinos, que faleceu no ano passado, foi a principal colaboradora do grupo nesta seara.

Ronaldo Fraga assinou o figurino de 'Santagustin', espetáculo do Corpo de 2002
Ronaldo Fraga assinou o figurino de 'Santagustin', espetáculo do Corpo de 2002 | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

“Eu me lembro como se fosse hoje. Foi o Paulo quem me ligou, me convidando para fazer o figurino do próximo espetáculo. Ele disse: ‘Olha, a gente podia se reunir amanhã’. Eu aceitei e fui. Dei um pulo lá na sede do Corpo. Mas quando cheguei, tive uma surpresa: estavam lá o Tom Zé, que fez a trilha, e a imprensa toda, inclusive de outros estados”, recorda, entre risadas, no que classifica como uma “quase emboscada criativa”. O espetáculo, afinal, ia acontecer em cerca de 45 dias. “Eu cheguei sem saber exatamente do que se tratava o espetáculo, e os jornais já querendo saber o que eu ia fazer. No fim, foi uma criação feita em tempo recorde”, comenta.

Dos bastidores, recorda de uma reunião com algumas bailarinas, que sugeriam tons mais escuros. “Eu respondi: ‘Ah, não. Vai ser pink e limão!’. E fiz tudo em verde-limão e rosa-choque. Apresentei para o Paulo, e ele aprovou de primeira”, comemora. As peças foram feitas em tricô, confeccionadas no Rio Grande do Sul. “Usamos um fio especial que dava elasticidade e, como novidade para a época, um fio luminescente. Com a luz certa, ele acendia pontos do corpo dos bailarinos no escuro: os seios, o genital, a bunda… O espetáculo começava com toques de celulares, no escuro total, com os bailarinos já em cena, e essas partes do corpo se iluminavam. Foi impactante”, diverte-se.

“Rezo muito para o acaso, e o acaso alinhou tudo, desde o convite até a realização das peças. Tanto que, apesar de ser muito crítico com meu trabalho, neste, com o passar do tempo, só fiz gostar mais. O espetáculo todo é fantástico, a começar pela trilha do Tom Zé com o Gilberto Assis, que trazia a Tetê Espíndola de volta depois de um tempo sem gravar, além da Vange Milliet. É um espetáculo que fala do amor a partir de um santo católico. E foi muito emocionante ver o resultado”, crava, classificando a companhia como “a pedra preciosa da cultura mineira”. “Por mais que a gente valorize a história deles, ainda é pouco. Viva o Grupo Corpo!”, arremata.