Lá no início dos anos de 1990, cada vez que Carla Camurati vinha a Belo Horizonte, um destino certo eram os sebos da área central. “Sebo é impressionante. Não é você que encontra os livros, mas são os livros que encontram você. Eu subia numa escada, puxava um livro, via que era do período (que precisava) e dizia ‘I don’t belive!’ (‘Eu não acredito!’ , em inglês)”, lembra a atriz e diretora, em entrevista a  O TEMPO. Na época, ela namorava um historiador do país bretão, parceiro de suas andanças pelas livrarias de obras usadas.

Essa relação literária foi determinante para a realização do filme que marcou a retomada do cinema brasileiro. Lançado há 30 anos, “Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil”, com retorno hoje às salas de exibição, em cópias remasterizadas em 4K, trouxe um olhar até então inédito sobre a nossa história colonial, sustentado principalmente pelos livros adquiridos por Carla nos sebos. “Queria que meu primeiro longa fosse sobre a história do Brasil. Virei rato de sebo, e os de Belo Horizonte são maravilhosos. Comprei muita coisa aqui”, registra.

Uma dessas aquisições foi uma edição original de “O Trono do Amazonas: A História dos Braganças no Brasil”, da pesquisadora alemã Bertita Harding, lançado em 1944. É justamente o livro que apresentou a Carla a sua protagonista: a espanhola Carlota Joaquina, esposa do rei dom João VI, com quem veio para o Brasil, após a transferência da corte da família real portuguesa, em 1807. “Achei uma segunda cópia aqui. Eu já tinha a minha, mas buscava outra porque queria que Melanie (Dimantas, roteirista) lesse também”, detalha.

“No momento que eu tive certeza de qual era o período que eu queria, a história começou a se formar na minha cabeça muito rapidamente. Eu sabia que não iria conseguir dinheiro no meu primeiro filme para fazer uma megaprodução. Tive que pensar uma arquitetura de roteiro que me possibilitasse fazer esse filme com qualquer dinheiro que conseguisse, de forma que a história já tivesse seu lugar”, registra Carla, que fez um verdadeiro milagre com os R$ 630 mil do orçamento.

A narrativa, frisa a realizadora, acontece na imaginação de uma menina escocesa, ao ouvi-la de um tio, que fala de um país distante, exótico, completamente diferente do que é a Europa. “Por isso tem tanta liberdade, com as coisas acontecendo na intensidade e da maneira como a gente resolveu. O dom Pedro I que ela vê é um homem lindo, de jaqueta de couro, que anda com um macaquinho no ombro. Não vê aquele cara do quadro do Museu de Petrópolis. Se eu não passasse pela imaginação dessa criança, que me desse essa liberdade de fantasia, seria muito mais difícil”.

Protagonizado por Marieta Severo, “Carlota Joaquina” representou uma necessária lufada de ar fresco num cinema sufocado pela extinção dos mecanismos de apoio à produção nacional, no governo de Fernando Collor. Em 1995, com Itamar Franco na Presidência e o início de uma reconstrução da indústria cinematográfica, o filme chegou a quase 1 milhão de espectadores com uma distribuição totalmente independente. O sucesso se deve muito ao seu formato de sátira histórica.

“É o humor mais brasileiro, o humor da chanchada, que é mais inocente, de brincadeira. É a Dercy (Gonçalves) fazendo Cleópatra, um tipo de humor que é brincadeira, mas ao mesmo tempo é sério. Por isso é engraçado. Ninguém ridiculariza nenhum personagem no meu filme. Quando você bate o olho, está todo mundo ali dentro, encarnado no personagem de verdade. Eu tive muita sorte. Um elenco que era impensável e uma equipe de uma infidelidade incrível. Só entrava gente para somar. Ninguém entrou para drenar energia”, recorda Carla.

“Peniquinho real” deu papel a Ludmila Dayer

Quando “Carlota Joaquina, a Princesa do Brazil” estreou, em 1995, com apenas quatro cópias de 35 milímetros (depois de 11 meses de sucesso, chegou a 33), Ludmila Dayer tinha apenas 11 anos. Tudo era muito novo para a atriz, que interpreta Carlota criança e também a escocesinha que ouve atentamente a história sobre a rainha que agitou os bastidores da Corte na então colônia portuguesa.

“Foi o meu primeiro trabalho, a minha primeira personagem, numa época em que eu não estava pensando ainda no que faria da minha vida. Caí de paraquedas na minha carreira, pelas mãos da Carla, mudando a minha vida para sempre. Se estou aqui hoje é por causa do ‘Carlota Joaquina’”, assinala Ludmila, que veio a BH, na segunda-feira (11), para sessão especial do filme ao lado de Carla Camurati.

Num complexo ainda vazio, horas antes da pré-estreia, elas lembram o golpe de sorte que foi a entrada da atriz no filme. “O destino é uma coisa muito louca, né? Tinha outra menina fazendo o personagem da Carlota. Estava ensaiando com ela e pedi para lermos a cena do ‘peniquinho real’, algo totalmente assexuado, mas o pai, que estava sentado ao lado, falou: ‘O quê? Minha filha não vai aparecer em penico’”, conta Carla.

“Eu disse que não era o que ele estava imaginando. Eu fiquei tão nervosa que me deu até vontade de rir. Provavelmente ele tinha uma outra cena completamente diferente na cabeça dele. Entramos num desespero total e começamos a ver todos os testes. Eu queria que a menina soubesse dança espanhola e, ao mesmo tempo, fizesse dois personagens, uma escocesa e outra espanhola”, recorda.

Imediatamente os produtores percorreram as escolas de dança espanhola, topando com Ludmila. “A Carla tinha uma clareza e uma segurança tão grande do que queria que todos nós entendíamos o que estava dentro da cabeça dela. A direção dela era tão objetiva, fazendo todos nós sentirmos pertencentes àquela obra. A gente queria dar o melhor e sabia exatamente o que tinha que dar”, elogia Ludmila.